Após denúncias de que o Discord, um aplicativo de mensagens voltado para o universo dos gamers, tem sido usado para disseminar ódio na internet, o PL das Fake News pode sofrer alterações em seu texto para coibir a prática de crimes em plataformas com menor alcance de usuários. No domingo, o “Fantástico” da TV Globo mostrou casos de “estupro virtual” e de incentivo à automutilação e a maus-tratos a animais na rede. Embora a empresa não forneça os dados oficiais, o Discord, no Brasil, teria, segundo especialistas em marketing digital, cerca de três milhões de usuários ativos, em março.
Algumas “comunidades” do Discord, que funciona de forma parecida com o Telegram, compartilham conteúdo misógino, homofóbico, racista e neonazista. O Telegram chegou a ser retirado do ar na semana passada por não fornecer informações para o combate ao extremismo solicitadas pelo Ministério da Justiça. Relator do PL das Fake News, o deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP) defendeu ontem ao GLOBO alterações no projeto, que pode ser colocado em votação hoje, para impedir qualquer tipo de impunidade.
Pela redação atual, apenas plataformas com mais de 10 milhões de usuários brasileiros estariam sob regulamentação. Além disso, servidores que realizam reuniões fechadas por vídeo ou voz também estão fora, o que é o caso do Discord.
— Deveríamos rever a linha de corte do número de usuários para não permitir que aplicativos como o Discord sigam impunes. É tema para se decidir na reunião de líderes que antevê a discussão do PL — afirmou o deputado.
No entanto, ainda não está clara se o Discord realmente escaparia da regulamentação. Na avaliação Thiago Tavares, presidente da SaferNet Brasil, ele pode ser interpretado tanto como uma plataforma de reuniões, quanto de mensagens.
— Ele seria definido pelo número de servidores privados ou de servidores públicos?) Ou número de usuários inscritos nos servidores públicos x servidores privados? Isso não está claro. O Discord pode ser considerado uma plataforma híbrida, que oferece espaços (que eles chamam de servidores) privados e públicos. É diferente do Zoom, Skype, Google Meet, etc — afirma.
O GLOBO levantou dados sobre como o Discord atua junto a especialistas em segurança digital. Para eles, a falta de regulação e de monitoramento do aplicativo abrem brecha para a ocorrência de crimes. Criado em 2015 pelo jogador de videogame e programador Jason Citron, a plataforma não caiu apenas no gosto dos jogadores. Pela arquitetura da rede, que permite a criação de “servers” — ou servidores — , é fácil reunir usuários que têm interesses em comum de forma anônima e cooptá-los para ações criminosas. Analista de monitoramento de grupos extremistas e neonazistas, Tatiana Azevedo observa que o material criminoso disponível no Discord fica concentrado em servidores específicos, que são facilmente rastreáveis.
— No Discord, assim como no Telegram, as pessoas se reúnem por afinidades nesses canais. Por conta desse conteúdo organizado, essas plataformas são mais atrativas para extremistas. Isso não existe no Twitter, que é todo baseado em leitura de timeline — explica. — Isso não significa que o Twitter não seja uma referência para extremistas. Lá, é o efeito bolha das redes que faz com que pareça que eles não estão lá quando navegamos.
A batalha do governo federal com as big techs tem idas e vindas. Depois de ficar fora do ar, o Telegram voltou a operar a partir da decisão do desembargador Flávio Lucas, do Tribunal Regional Federal(TRF2). Ele manteve, entretanto, a multa de R$ 1 milhão por dia até que a plataforma forneça os dados para a investigação de grupos neonazistas da Polícia Federal.
Salas e bate-papo são isca
O Discord não não tem um feed como o Twitter ou o Instagram. Ele é formado por salas de bate-papo, nas quais é possível trocar fotos, vídeos e fazer transmissões ao vivo. Os “servers” podem ser públicos — basta ter o link para acessá-los — ou privados, quando é necessário convite do administrador do grupo.
Nos “servers” mais acessíveis, o conteúdo extremista está em formato de memes e piadas ofensivas. Segundo Azevedo, eles funcionam como uma espécie de isca que leva os mais engajados para grupos discretos, com conteúdos ainda mais perigosos.
— Já vi adolescentes criando conteúdo ao vivo com pornografia infanto-juvenil, tortura animal, automutilação, além de divulgação e cooptação para grupos nazistas — diz a pesquisadora.
Segundo Michele Prado, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP, pelo menos dois adolescentes que atacaram escolas nos últimos meses no Brasil utilizaram o Discord e deram indícios na plataforma de que poderiam realizar atentados. Ela avalia que a moderação da plataforma no Brasil é mais frágil do que em outros países:
— Aqui no Brasil, a moderação não é totalmente horrível, mas é muito aquém da de outros países. Há uma barreira da língua que cria uma discrepância nas políticas de segurança em relação a países de língua inglesa, onde há banco de dados de termos suspeitos muito mais robusto.
Segundo ela, o piso de 10 milhões de usuários deixa de fora alt-techs, empresas menores que imitam as funcionalidades das big-techs, nas quais também são encontrados conteúdos extremistas.
— Esse número realmente deixa de fora a maioria das alt-techs. E são as alt-techs os maiores desafios na moderação de conteúdo, políticas e protocolos de segurança em relação ao extremismo violento e terrorismo online. Na Alemanha, são 4 milhões. Em muitos casos, foram desenvolvidas por extremistas mesmo após medidas de deplataforma nas big-techs — afirma.
De acordo com o “Fantástico”, um jovem de 20 anos foi preso em Minas Gerais, acusado de torturar meninas pelo Discord. Elas foram enganadas pelo suspeito que obteve imagens íntimas delas em situações humilhantes e ameaçava publicá-las na internet. Há juristas que já definem a prática como “estupro virtual”.
— Foi verificada uma nova modalidade de atuação de adolescentes de redes sociais nos papéis de vítima e agressor. Eles se expõem a situações muito degradantes. Isso tem acontecido no Dicord, mas não só — disse ao programa, Otávio Margonari Russo, diretor de Combate a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal.
Em nota, o Discord informou que adota as medidas cabíveis contra os “servers” denunciados e que mantém contato ativo com o governo brasileiro para a aplicação da lei.