SEM DIRETIO DE DEFESA – Frustração, é o que sente a advogada Ana Caroline Sibut, responsável pelos casos de 16 manifestantes presos no 8 de janeiro — a maioria cumpre liberdade provisória e usa tornozeleira eletrônica. Segundo a advogada, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem violado uma série de prerrogativas das defesas, desde o início das prisões. As sustentações orais, por exemplo, que deveriam ter sido presenciais no plenário da Corte e com duração de 15 minutos para cada advogado, ocorreram virtualmente e foram mais mais curtas. Os advogados tiveram de gravar vídeos de até dez minutos e enviá-los a um sistema eletrônico do STF, sem poderem ficar cara a cara com os juízes, como estabelece a lei.
Conforme Ana Caroline, meia hora depois de postar sua sustentação oral, veio a decisão do relator, Alexandre de Moraes, tornando réus dezenas de manifestantes. O voto do ministro tinha uma série de argumentos genéricos. “É matematicamente impossível decidir tão rápido assim, ainda mais com a quantidade expressiva de sustentações orais de advogados para apreciar”, observou Ana. “A impressão que tenho é de que meu trabalho nem sequer foi analisado.”
Em situações normais, a Justiça dá pouco mais de uma semana para a defesa preparar essa etapa do processo, que sucede uma manifestação presencial de um procurador do Ministério Público Federal — a qual não houve. Nos casos dos manifestantes presos, os advogados, geralmente, têm recebido um aviso do STF às quintas-feiras à noite, com prazo de entrega até a próxima segunda. Os que cuidam de vários processos, como é o caso de Ana Caroline, precisam “se virar nos 30”, como a própria diz, para dar conta de tantas análises. Em algumas ocasiões, o trabalho se estende aos sábados e domingos.
Moraes também nunca recebeu os advogados dos manifestantes numa reunião presencial, um direito que a defesa tem. “Se um advogado possui um processo em análise por outros ministros, eles conseguem reunir-se com um juiz do STF, menos com Moraes”, contou Ana Caroline. “Esse comportamento me leva a crer que estamos trabalhando para nada. Além do desgaste físico, há também o emocional. Lidar com essa situação é bem revoltante, sobretudo por se tratar de gente que não cometeu crimes.”
Somadas a esses problemas há as despesas, como viagens, alimentação e combustível. Isso porque há manifestantes presos de vários Estados. “As famílias ajudam com o que podem”, contou Ana, ao mencionar que há advogados que tiram do próprio bolso ou usam milhas de cartão de crédito para conseguir defender seus clientes. A maioria desses profissionais está em regime pro bono, ou seja, de forma voluntária, e concilia os casos às pencas de processos de clientes de que já cuidavam antes do 8 de janeiro.
Outras vozes caladas
A batalha de Ana Caroline Sibut tem sido a mesma da advogada Morgana Mariot, que cuida de nove clientes no sistema pro bono, em sua maioria homens, todos em liberdade provisória. Aos absurdos já descritos, ela acrescenta as dificuldades para acessar os autos dos processos, por causa do sigilo do inquérito. Essa interdição da Justiça prejudicou a montagem da defesa dos clientes. “Poder ler todas as acusações que pairam sobre alguém é o básico num processo normal”, disse. “O que conseguimos foi ver apenas alguns detalhes das denúncias, que são praticamente as mesmas. Não houve individualizações.”
Morgana lembrou também a luta para localizar seus clientes na Papuda e na Colmeia, logo depois que deixaram o ginásio da Polícia Federal. A advogada disse que, ao saberem que seriam presos, os detidos deveriam ter tido a chance de chamar os advogados. Ela foi convocada às pressas por parentes dos manifestantes que souberam o que estava acontecendo com eles. “Nessa confusão toda, havia muitas informações desencontradas. Eu nem sequer sabia onde estavam os meus clientes”, contou. Ultrapassado esse obstáculo, ela teve de lidar com os entraves para falar com os manifestantes, de forma presencial e virtual. De acordo com a advogada, o requerimento a ser feito pela internet era extenso, e o site, lento. Um dos requisitos: o comprovante com duas doses da vacina contra a covid-19. “Em situações em que se exige a presença da pessoa no presídio, é compreensível, mas à distância não faz sentido”, observou. Hoje, as visitas estão mais flexíveis para os advogados. Já os familiares têm encontrado certa dificuldade, seja por causa da locomoção, seja porque não tomaram os imunizantes.
Assim como Ana Caroline, Morgana suspeita de que suas petições não estão sendo lidas pelo STF. Isso porque um de seus clientes, em liberdade provisória, perdeu o emprego, em virtude da limitação de distância estabelecida pela tornozeleira eletrônica. A advogada fez sucessivos pedidos ao juiz responsável pelo caso do homem em seu Estado de origem. O magistrado, porém, avisa que não tem competência para deliberar sobre o caso, e o envia ao STF. Ao chegar à Corte, não há mais respostas sobre a situação. “Fazemos cursos e nos especializamos para dar de cara com essa situação totalmente anormal”, desabafou Morgana. “Essas pessoas nem deveriam estar sendo julgadas pelo STF, visto que não têm foro privilegiado. Sinto-me completamente impotente diante de todo esse cenário.”
“Não pedimos privilégio, mas que os presos sejam julgados conforme a lei. Quando abrimos esse precedente, estamos muito próximos de um Estado de exceção”
Géssica Almeida vive a mesma situação das colegas. Em regime pro bono, ela tem três clientes ainda detidos em penitenciárias. A advogada se assustou quando viu os mesmos crimes supostamente cometidos por todos os manifestantes que atende. Um deles está previsto no artigo 359-L da Lei 14.197, de 2021, que trata da “abolição do Estado Democrático de Direito”. “Colocaram uma régua em todos”, observou a advogada, ao mencionar que a pena para esse crime vai de quatro a oito anos. “Além disso, não há previsão para essa situação acabar. Nós torcemos para que haja uma definição. Por enquanto, estamos no escuro.”
Apelos por justiça
Nesta semana, depois de Moraes tornar réus mais de 250 manifestantes, 55 advogados dos presos no 8 de janeiro foram ao Congresso Nacional para pedir justiça e denunciar abusos cometidos pelo STF. “O STF usurpa a competência legítima da Justiça Federal e tira o direito ao duplo grau de jurisdição, previsto em lei”, disse a advogada Carolina Sievra. “Não pedimos privilégio, mas que os presos sejam julgados conforme a lei. Quando abrimos esse precedente, estamos muito próximos de um Estado de exceção. Tirar dessas pessoas o direito de terem um juiz natural e as argumentações de defesa é ferir de morte a Constituição.”
Antes mesmo desse encontro, a atuação do STF nos casos do 8 de janeiro incomodaram até advogados pró-Lula, ligados ao movimento Prerrogativas. O grupo publicou um artigo no jornal O Estado de S. Paulo com críticas ao cerceamento do direito de defesa dos manifestantes e às violações de direitos dos advogados. Depois de listarem uma série de abusos, eles fizeram um apelo: “Limitações de acesso a elementos dos autos, restrição ao uso da palavra, denúncias genéricas são limitações ao exercício do direito de defesa que não podem habitar no Brasil pós-8 de janeiro, porque são diretrizes incompatíveis com a Constituição e a nossa democracia.”
*Com informações revista oeste