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Um indígena nos cárceres do STF

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Perseguição judicial contra Serere mostra que, assim como Daniel Silveira, o cacique se tornou um preso particular do ministro Alexandre de Moraes

Ao retornar de bicicleta para Puerto Iguazú, na Argentina, depois de passar algumas horas em Foz do Iguaçu, no Paraná, o cacique Serere Xavante foi parado na alfândega da Ponte Tancredo Neves, que liga os dois países, no domingo 22. Durante a abordagem, agentes constataram que o indígena estava sem documentos e, por isso, resolveram puxar a ficha dele.

Descobriram que havia um mandado de prisão preventiva expedido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em virtude de oito supostos descumprimentos de medidas restritivas. Dessa forma, as autoridades estrangeiras decidiram entregá-lo à Polícia Federal (PF) brasileira, que prontamente colocou o indígena atrás das grades. No único telefonema a que teve direito, ligou para a mulher, Sueli, antes de ser enjaulado.

Na mesma semana, o pesadelo que voltou a tomar conta do indígena também destruiu o sonho de Daniel Silveira de voltar a ter uma vida normal. Na véspera do Natal — e quatro dias depois de ter concedido a liberdade condicional ao ex-deputado —, Moraes mandou Silveira de volta ao presídio de Bangu 8, no Rio de Janeiro, em virtude de “violações de medidas restritivas”.

No mesmo dia em que as autoridades argentinas entregaram Serere à PF, Silveira teve uma crise renal, que o levou às pressas para o Hospital Santa Teresa, em Petrópolis (RJ). Como não avisou Moraes desse movimento e ultrapassou o horário permitido para voltar para casa (22 horas), acabou tendo a liberdade condicional revogada. Agora, Silveira mais uma vez não sabe quando conseguirá deixar o presídio.

Foi para tentar evitar o tormento ao qual os prisioneiros particulares de Moraes estão submetidos que Serere mudou-se para o país vizinho, em julho deste ano, em busca de asilo político. O indígena tomou a iniciativa radical depois de receber em sua casa, em Aragarças (a cerca de 400 quilômetros de Goiânia), uma nova ordem de prisão vinda do STF, por causa das violações às ordens de Moraes. Cansado do assédio judicial promovido pelo juiz do STF, partiu com a família rumo a Foz.

Na sequência, seguiu para Puerto, onde encontrou um lugar para ficar e obteve uma permissão provisória que autoriza a permanência de estrangeiros em um país. O objetivo era se regularizar até ter condições de trazer Sueli e os cinco filhos que moram com ele. Durante algum tempo, o cacique se arriscou cruzando a via que une Brasil e Argentina, mas não havia sido capturado.

De acordo com Geovane Veras, advogado de Serere, o indígena não poderia ter sido detido. Isso porque ele tem autorização para ficar na Argentina até obter o asilo político. “Trata-se de um ato ilegal”, constatou Veras. “Além disso, não existe nenhum pedido de extradição expedido pelo Ministério da Justiça [MJ] para prender Serere na Argentina, porque nem sequer há condenação.

O processo de Serere encontra-se na fase de instrução.” Em junho, o MJ enviou ao país vizinho uma lista com os nomes de 60 fugitivos do 8 de janeiro. O de Serere, no entanto, não consta no ofício. Por isso, ele não deveria ter sido devolvido ao Brasil. Sem o único provedor da casa, os dependentes do cacique terão de se virar em Foz, onde não conhecem quase ninguém.

O indígena José Acácio Serere Xavante, conhecido como cacique Serere | Foto: Eurico Eduardo/CLDF

Perseguição

O tormento de Serere e de todos ao seu redor começou em 12 de dezembro de 2022, quando Moraes determinou sua prisão (que deveria ter durado, no máximo, dez dias), em virtude de “atos antidemocráticos” em Brasília para impedir a posse de Lula.

Durante nove meses, o indígena teve de dividir uma cela apertada com outros dez presos, dormiu sentado quando não era a sua vez de revezar os poucos colchões disponíveis, tomou banhos gelados e comeu comidas ruins. Em mais de uma ocasião, a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu pareceres pela soltura de Serere, mas Moraes ignorou os ofícios encaminhados pela então vice-PGR, Lindôra Araújo.

Tampouco os pedidos para mudar o cardápio de Serere receberam atenção. O indígena tem de comer alimentos específicos, de modo a evitar a piora da diabetes. A defesa conta que entrou com requerimentos solicitando mudanças na alimentação. Não houve resposta. Nem mesmo a carta que Serere publicou, na qual pede desculpas pelas ofensas proferidas contra Moraes, sensibilizou o ministro.

No documento, o indígena afirma que “nunca defendeu ruptura democrática”, mas, sim, criticou a vitória de Lula na eleição de 2022. Declarou também que não acredita na violência como método de ação política. “Entendo que o amor, o perdão e a conciliação são os únicos caminhos possíveis para a vida em sociedade”, declarou o cacique no documento.

Antes da carta, Serere divulgou um vídeo pedindo a seus apoiadores para não cometerem violência ou vandalismo como reação à sua prisão. Nas imagens registradas direto da sede da PF, em Brasília, o cacique aparece falando em sua língua nativa, o aquém. “Não venha fazer conflito, briga ou confronto com autoridades policiais”, orientou o indígena. Moraes também desconsiderou esse ato pacífico e manteve a acusação por “atentado contra o Estado Democrático de Direito” e os três Poderes.

Quando deixou a Papuda, em 9 de setembro de 2023, Serere passou a residir em uma casa que Sueli havia comprado em Aragarças (GO) com as poucas economias que o casal tinha. Fora da cadeia, o cacique mostrou que quem tem a vida interrompida pelo brusco desaparecimento de horizontes raramente escapa do forte abalo emocional.

No dia a dia, sua mulher se queixou inúmeras vezes da impaciência do marido com atividades domésticas simples e, principalmente, das crises que o cacique tinha sempre que lembrava da impossibilidade de trabalhar como motoboy, por causa dos limites estabelecidos pela tornozeleira eletrônica que Moraes o obrigou a usar, sem qualquer prazo definido para o equipamento ser removido.

Moraes impôs a Serere o uso por tempo indefinido de tornozeleira eletrônica, restringindo a vida e o trabalho do indígena | Foto: Gustavo Moreno/STF

Sentenciado à miséria

Habituado a andar pelos mais de 200 mil hectares da terra indígena Parabubure, no interior de Mato Grosso, Serere tinha de passar horas perto da tomada para recarregar o equipamento e também não podia ultrapassar o raio de 1 quilômetro da casa onde morava. Serere tinha de sair de casa às 6 horas e precisava voltar antes das 18 horas. Sem dinheiro e desesperado, o indígena se arriscou ao aceitar o trabalho de pedreiro em uma área fora do perímetro delineado pela PF. Por causa disso, a corporação identificou o descumprimento das cautelares estabelecidas por Moraes, que determinou nova prisão.

A tornozeleira impedia Serere não só de ganhar dinheiro como também de dar seguimento ao tratamento da diabetes tipo 2. Segundo o advogado de Serere, um laudo médico constatou que o indígena ainda corre o risco de perder membros do corpo se não tratar a doença de forma adequada. “Há momentos em que a visão dele fica turva”, disse.

A enfermidade se agravou ainda na Papuda, quando Moraes ignorou os alertas referentes à alimentação de péssima qualidade e à escassez de medicamentos necessários para amenizar a doença. “Aragarças e a região não têm hospital que ofereça o tratamento especializado de que ele precisa”, afirmou Veras.

De acordo com o advogado, Serere fica muito comovido quando pensa na cerimônia que ocorreu em sua tribo, em 8 de outubro do ano passado. Seu filho Carlos, que tinha 12 anos, foi agraciado com um título que o põe na linha sucessória da liderança.

Como cacique, Serere deveria ter comparecido à liturgia. A tradição local diz que o pai tem de apresentar e abençoar o filho ao integrante mais velho para que o jovem assuma o posto, que tem responsabilidades. Geralmente, o patriarca orienta o escolhido sobre como proceder em determinadas situações e o prepara para o cargo. A tornozeleira impediu a presença do indígena no ato. Também por causa do equipamento, ele não pôde comparecer ao velório do pai, que morreu com 100 anos.

Moraes impôs restrições que impediram Serere de trabalhar, tratar sua diabetes e cumprir obrigações culturais, como abençoar seu filho em uma cerimônia de sua tribo e comparecer ao velório do pai. A negligência com sua saúde e os limites da tornozeleira agravaram sua situação emocional e física | Foto: Reprodução/CLDF

Prisioneiro de Moraes

Durante todo o martírio, Serere não recebeu qualquer ajuda ou sequer uma nota de solidariedade do Ministério dos Povos Indígenas ou da Funai. Essas mesmas instituições são as primeiras a alardearem na imprensa engajada supostos abusos praticados pelos “ruralistas” contra indígenas de esquerda. São elas também as autoras de inúmeras ações no STF para derrubar o marco temporal e reaver terras do agronegócio para os “povos originários”.

Esse mesmo abandono de quem está no poder ocorreu com Silveira. Por 364 votos a 130, a Câmara manteve a prisão ilegal do então deputado, em fevereiro de 2021, quando deveria ter zelado pela imunidade de todos os parlamentares. Há três anos, Silveira é torturado ao lado de gente que não cometeu nenhum crime.

Caso consiga se livrar do tormento, Serere pretende reassumir o posto de cacique da aldeia onde morava, principalmente para dar continuidade ao trabalho social que fazia, como o de enfrentamento aos entorpecentes. Seu advogado conta que, desde que Serere foi preso, vários indígenas se entregaram de vez às drogas.

Não é incomum vê-los pedindo dinheiro nas ruas de Campinápolis, onde fica a terra indígena Parabubure, para depois comprar crack e maconha de traficantes locais. A depender de Moraes, contudo, Serere continuará um preso particular com a vida suspensa no purgatório dos inocentes.

*Com informações revistaoeste

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