A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o Instituto Brasileiro de Transmaculinidades (Ibrat) ingressaram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que restringe o acesso a tratamentos hormonais para crianças e adolescentes transgênero.
A petição argumenta que a resolução do CFM é tecnicamente “arbitrária por ignorar a medicina baseada em evidências e desconsiderar o bem-estar dessas crianças e adolescentes” trans.
Segundo as entidades, a resolução viola “diversos princípios constitucionais, incluindo a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, o livre desenvolvimento da personalidade e a proteção integral da criança e do adolescente”.
Na resolução, o CFM orienta que o atendimento médico deve ser pautado pelo Projeto Terapêutico Singular (PTS), instrumento que propõe condutas personalizadas elaboradas por equipe multiprofissional e interdisciplinar, levando em conta a singularidade de cada paciente. O objetivo é garantir uma atenção integral à saúde física e mental de pessoas com disforia de gênero, reforçando o acolhimento, o diálogo e a atuação conjunta dos profissionais de saúde.
A partir da nova norma, a terapia hormonal cruzada — administração de hormônios sexuais para induzir características secundárias do gênero com o qual o paciente se identifica — só poderá ser iniciada a partir dos 18 anos. A mudança eleva em dois anos a idade mínima prevista na resolução anterior, que era de 16 anos, alinhando-se à Portaria nº 2.803/2013 do Ministério da Saúde.
Para iniciar o tratamento, o paciente deverá ter passado por pelo menos um ano de acompanhamento médico, com ênfase em avaliação psiquiátrica e endocrinológica, além de apresentar parecer favorável em avaliação cardiovascular e metabólica. A presença de doenças psiquiátricas graves ou outras condições clínicas que contraindiquem o uso de hormônios é impeditiva para o início da terapia.
Apesar do CFM reforçar que as novas regras são para reduzir os riscos associados à intervenção precoce, as entidades pedem a retomada da redação original da Resolução CFM 2.265/2019 para garantir o “direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade de crianças trans ao bloqueio hormonal da puberdade, a adolescentes trans a hormonização a partir dos dezesseis anos e a pessoas adultas trans à cirurgia de afirmação de gênero, a partir dos dezoito anos (maioridade civil)”.
“Alinhamento político-ideológico”
Na ação, as entidades ainda classificam a resolução do CFM como um reflexo do “alinhamento político-ideológico com setores ultraconservadores, empenhados em deslegitimar identidade trans”.
Para as entidades, o CFM baseou sua “orientação” em “medidas tomadas por governos que reagem às diversidades existenciais em suas discussões e ideologias políticas”, ignorando o posicionamento de entidades como a Academia Americana de Pediatria (AAP) e a Sociedade de Endocrinologia.
No documento, há críticas ao CFM por se basear em “premissas transfóbicas e desconsiderar o sofrimento causado pela não afirmação da identidade de gênero na puberdade”. A ação denuncia uma “matriz cisnormativa imanente à Resolução atacada, que patologiza a diferença, naturalizando a lógica cisgênera e excluindo corpos que não importam ao CFM”
De acordo com o relator da resolução, conselheiro federal Raphael Câmara, países como Reino Unido, Suécia, Noruega e Finlândia já revisaram suas diretrizes e limitaram o uso de bloqueadores hormonais.
“A maioria dos riscos físicos associados aos bloqueadores da puberdade é devida ao seu efeito de suprimir a produção de hormônios sexuais. A exposição a hormônios sexuais é importante para a resistência óssea, para crescimento adequado e para o desenvolvimento de órgãos sexuais. Consequentemente, densidade óssea reduzida, altura alterada e fertilidade reduzida podem ocorrer como resultados do tratamento”, observa Câmara.
A vedação, no entanto, não se aplica a situações clínicas já reconhecidas pela literatura médica, como a puberdade precoce ou doenças endócrinas específicas.
O que as entidades pedem ao STF:
- Concessão de Medida Cautelar ou Tutela de Urgência: Para suspender imediatamente a íntegra da Resolução CFM 2.427/2025, com o restabelecimento da vigência da Resolução CFM 2.265/2019 até o julgamento definitivo da ação. Subsidiariamente, pedem a suspensão cautelar de artigos específicos da nova resolução que geram os retrocessos.
- Julgamento de Procedência Total da Ação: Para declarar a inconstitucionalidade total da Resolução CFM 2.427/2025, com a consequente restauração da validade da Resolução CFM 2.265/2019.
- Declaração de Inconstitucionalidade Parcial: Caso a inconstitucionalidade total não seja acolhida, pedem a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos específicos da Resolução 2.427/2025 que cassam direitos.
- Decisão Aditiva de Princípios: Para que, mesmo que os pedidos anteriores não sejam atendidos, o STF profira uma decisão que explicite o dever fundamental do CFM de reconhecer e proteger o valor intrínseco de pessoas trans desde a infância, à luz do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, determinando que seja aprovada uma nova resolução em consonância com esses princípios.
- Apelo ao Executivo: Para que o Ministério da Saúde cumpra o compromisso assumido perante a ONU de aprimorar os serviços de saúde para a população transgênero.
- Recebimento da Ação como ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental): Caso o STF entenda que os pedidos envolvem tanto inconstitucionalidade por ação quanto por omissão, as entidades requerem que a ação seja recebida como ADPF.