Com a intenção louvável de enfrentar o extremismo, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania constituiu um grupo de trabalho que produziu um relatório de 82 páginas com recomendações para garantir direitos fundamentais nas redes sociais. O texto sugere que o país adote uma “Constituição para o ambiente virtual, visando proteger os direitos e liberdades dos indivíduos que interagem nesse espaço”.
O relatório alinhava uma proposta de conteúdo para essa “Constituição digital”, com o objetivo de combater o uso das redes sociais para promover o extremismo, fomentar violência e disseminar aquilo que identifica como discurso de ódio. Entre os exemplos de manifestações a combater estão misoginia e violência contra as mulheres, racismo, ódio e violência contra a população LGBTQIA+, xenofobia, ódio e violência contra pobres, violência política, neonazismo e atos extremistas contra a democracia.
Não há dúvida de que a propagação do extremismo pelas redes sociais é um dos maiores desafios das democracias marcadas pela polarização. É fundamental combater o racismo e os preconceitos, a desinformação que traz risco a grupos vulneráveis e as comunidades cujo objetivo é criminoso. A iniciativa do Ministério dos Direitos Humanos embute, porém, dois riscos.
O primeiro é ser inócua. Boa parte das sugestões já é contemplada pela legislação. Não é a falta de leis contra racistas, neonazistas ou homófobos que prejudica a luta contra o discurso de ódio. Tome-se como exemplo o subcapítulo intitulado “Capacitismo e violência contra as pessoas com deficiência”. Em 2007, o Brasil assinou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada por decreto em agosto de 2009. Há 14 anos está em vigor um dispositivo legal contra o capacitismo. É difícil entender o que teriam a ganhar os deficientes incluindo na tal “Constituição digital” determinações já em vigor. Quase todas as recomendações do relatório estão previstas de alguma forma na lei ou na própria Constituição.
O segundo risco é a tentativa, louvável que seja, servir de pretexto para grupos políticos imporem agendas próprias em detrimento de direitos fundamentais, como as liberdades religiosa e de expressão. Cercear o discurso é sempre questão juridicamente sensível. Medidas contra a livre manifestação de ideias ou crenças devem ser tomadas apenas em casos excepcionalíssimos, sempre com amparo legal. É razoável o relatório sugerir ações para educação midiática da população, alvo de desinformação. Mas é ridículo recomendar boas práticas a jornalistas e comunicadores, como se o problema estivesse aí.
Falta ao relatório dar a ênfase devida ao fulcro da questão: o papel das plataformas digitais na proliferação do discurso de ódio. A principal deficiência jurídica que permite o uso da internet para disseminá-lo é a garantia legal de que elas não são corresponsáveis pelas consequências do que veiculam. Modificar a lei para responsabilizá-las é justamente a essência do Projeto de Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, o PL das Fake News. Inspirado na melhor legislação internacional, ele promove o difícil equilíbrio entre liberdade de expressão e combate a discurso de ódio. Em vez de defender a nova “Constituição digital”, o ministério deveria apenas recomendar a aprovação do PL com urgência. Seria mais produtivo para o país.
*Com informações OGLOBO