O PL 2338/23, de autoria do então presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), começou a ser tramitado às pressas na metade do ano passado, numa comissão temporária sobre Inteligência Artificial (CTIA). O projeto apresenta propostas de regulamentação às IAs no Brasil – o que é uma preocupação legítima. No entanto, os artigos 14, 15, 47 e 77, especificamente, suscitam preocupações acerca da garantia da liberdade de expressão no contexto nacional. Sobrecarga regulatória, possível insegurança jurídica e, até mesmo censura indireta, são alguns dos problemas advindos da redação do PL.
O artigo 14 define e amplia o rol dos sistemas de inteligência artificial considerados de alto risco, com a intenção de evitar o uso abusivo de tecnologias com grande potencial de dano social. O problema, entretanto, reside na combinação deste com o artigo 15 do mesmo PL. Este último permite que a autoridade responsável, dentro do Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA), inclua novos sistemas na categoria de alto risco por meio de regulamentação infralegal – isto é, sem a necessidade de aprovação de uma nova lei.
Atualmente, muitos países discutem uma regulamentação da inteligência artificial que garanta a preservação da liberdade de expressão. Iniciativas como o AI Act, em tramitação na União Europeia, tentam balancear inovação e direitos fundamentais
A possibilidade de flexibilizar a definição de sistemas de ‘alto risco’ sem a participação do Congresso promove um cenário de insegurança jurídica para empresas, pesquisadores e desenvolvedores, que não terão certeza se suas soluções poderão ser reclassificadas no futuro. Ademais, o escrutínio excessivo dos algoritmos de recomendação pode levar as plataformas a moderarem conteúdo de maneira mais conservadora, temendo sanções, o que resultaria em menor pluralidade de vozes e a possível censura de pautas controversas.
Como explicamos no posicionamento do Centro Voxius, o programa dedicado à defesa e promoção da liberdade de expressão no Instituto Sivis, “limitar a liberdade de expressão, de maneira ampla e subjetiva, parte da premissa de que apenas ideias ‘contrárias à democracia’ serão censuradas. Contudo, esse conceito sempre é passível de ampliação, correndo o risco de atingir também ideias legítimas que são essenciais para o progresso social e democrático”.
Além disso, o artigo 47, compromete o sistema democrático de freios e contrapesos. Isso porque atribui à ANPD poderes normativos, regulatórios, fiscalizatórios e sancionatórios plenos em setores onde não exista um regulador setorial específico. É preciso, portanto, estabelecer limites específicos aos poderes deste órgão. A ANPD não deve ultrapassar seu escopo de proteção de dados pessoais, especialmente pois outros setores já estão cobertos por agências especializadas.
Por fim, o artigo 77 estabelece que a regulação da circulação de conteúdo online só possa ser feita por meio de legislação específica. Isso inclui algoritmos de moderação e recomendação via IA. Apesar do artigo parecer um dispositivo legal para proteger a liberdade de expressão, provoca, na prática, o efeito contrário. Isso porque gera uma enorme ambiguidade jurídica, já que não impede que órgãos reguladores fiscalizem condutas com base nas leis vigentes. Assim, plataformas, desenvolvedores e usuários permanecem sem clareza, levando a ambientes mais restritivos de discussão, moderação excessiva ou, até mesmo, autocensura.
Atualmente, muitos países discutem uma regulamentação da inteligência artificial que garanta a preservação da liberdade de expressão. Iniciativas como o AI Act, em tramitação na União Europeia, tentam balancear inovação e direitos fundamentais. Um bom caminho seria tratar a discussão de maneira similar, ou seja, garantindo a devida precisão e limitação da atuação dos órgãos regulatórios. Assim, o projeto de lei poderá representar a conciliação entre a regulamentação e a preservação da liberdade de expressão, um valor democrático fundamental.