Quando o Supremo Tribunal Federal encerrou, no início de março, o julgamento que alterou a jurisprudência da corte sobre a prerrogativa de foro, de imediato surgiram duas preocupações: com o caráter casuísta da decisão, que dava à corte legitimidade para julgar o ex-presidente Jair Bolsonaro pela suposta tentativa de golpe de Estado; e com a potencial insegurança jurídica derivada da possibilidade de processos e julgamentos precisarem ser refeitos. Menos de um mês depois da mudança, a realidade parece ainda pior, apontando para o perigo do uso político da possibilidade de o STF julgar ex-autoridades, mesmo depois do fim de seus mandatos ou do exercício dos cargos que lhes davam prerrogativa de foro no Supremo.
O caso mais emblemático é o de Gilberto Kassab, cacique do PSD e atual secretário de Governo e Relações Institucionais em São Paulo. Em 2018, quando era ministro de Ciência e Tecnologia de Michel Temer, ele começou a ser investigado por corrupção e caixa dois, após executivos da J&F terem contado, em delação premiada, que Kassab teria recebido propina do grupo, além de ter “vendido” o apoio do PSD ao PT em 2014, quando Dilma Rousseff venceu a eleição presidencial. Em 2019, ele deixou o ministério e Alexandre de Moraes enviou o caso à Justiça Eleitoral paulista; quatro anos depois, o TRE de São Paulo trancou a ação por falta de provas, e a decisão transitou em julgado. Mas o mesmo Moraes acaba de ordenar que o caso volte para o STF.
Tribunal nenhum tem o direito de jogar com processos, fazendo-os parar ou andar, por critérios de conveniência ou para usá-los como moeda de troca por apoio ou oposição a projetos de interesse de determinado juiz
Seria apenas uma aplicação do novo entendimento como qualquer outra, se não fosse por uma série de detalhes, e o mais chamativo deles é o timing da decisão de Moraes. O ministro “puxou” o processo de Kassab de volta ao STF um dia depois de Bolsonaro afirmar, em manifestação no Rio de Janeiro, que Kassab havia prometido apoio do PSD – com 15 senadores, 44 deputados e considerável influência sobre o resto do Centrão – à pauta da anistia aos condenados do 8 de janeiro. A ideia tem oposição forte tanto no governo quanto no STF, cujos ministros já falaram inúmeras vezes sobre o assunto, mantendo o mau hábito de dar sua opinião sobre temas que inclusive poderão vir a julgar no futuro.
O processo de Kassab, é verdade, não foi o único a ser requisitado por Moraes; o mesmo ocorreu com casos envolvendo o ex-ministro Ricardo Salles, ex-deputados federais e ex-senadores. A assessoria de Kassab nega que a decisão de Moraes constitua algum tipo de pressão. No entanto, é sintomático que vários jornalistas e comentaristas políticos, incluindo alguns com acesso a ministros do Supremo, estejam tratando a decisão como uma “arma” para tirar o PSD do páreo e enfraquecer o apoio parlamentar à anistia, chegando até a sugerir que o mesmo recurso possa ser usado para intimidar outros deputados e senadores – a mesma percepção, aliás, é compartilhada por congressistas e pelo governo, segundo apuração da Gazeta do Povo. Esta, portanto, é uma hipótese que nem de longe se pode descartar de antemão, especialmente à luz das palavras de Luís Roberto Barroso, que em 2023 afirmou que o Judiciário, no Brasil, “deixou de ser já há um tempo um departamento técnico especializado. Passou a ser um poder político na vida brasileira”.
Não são apenas o timing e vários outros aspectos envolvendo Kassab que precisamos levar em conta. Qualquer estudante de primeiro ano de Direito sabe que a Justiça só age quando provocada; no entanto, Moraes ordenou a remessa das ações ao STF não a pedido dos envolvidos, nem da Procuradoria-Geral da República, mas “de ofício”, ou seja, por iniciativa própria – só agora a PGR foi chamada a analisar a questão e opinar pela reabertura do processo ou pela manutenção do arquivamento. Esse tipo de atitude, contrária a um princípio básico que rege a atuação da Justiça, não contribui em nada para dissipar dúvidas a respeito de uma pressão de bastidores sobre políticos para que eles cedam a demandas dos ministros do Supremo; pelo contrário, ela apenas ajuda a reforçar as suspeitas de uma atuação política.
Por fim, destaque-se que, entre os outros processos que Moraes trouxe de volta ao STF, há outro que também pode ser entendido como possível retaliação política. Em 2023, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, moveu ação por calúnia, difamação e racismo contra o então deputado federal Deltan Dallagnol, após o parlamentar ter insinuado uma “permissão” do tráfico para que Dino pudesse visitar o Complexo da Maré, área dominada pelo crime organizado no Rio de Janeiro – e onde as forças de segurança só conseguem entrar à custa de muita superioridade bélica. Dallagnol, que há muito tempo é um dos críticos mais enfáticos do Supremo (onde Dino agora é ministro), foi cassado em maio de 2023 em uma das decisões mais absurdas da história do TSE; quando isso ocorreu, o processo foi para a primeira instância no Distrito Federal, onde estava parado. Embora não se trate de decisão transitada em julgado, como no caso de Kassab, aqui está em jogo, mais uma vez, a relativização da imunidade parlamentar “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, como diz o artigo 53 da Constituição.
Que políticos têm de responder pelos crimes cometidos é evidente. Mas tribunal nenhum, muito menos uma suprema corte, tem o direito de jogar com processos, fazendo-os parar ou andar, por critérios de conveniência ou para usá-los como moeda de troca por apoio ou oposição a projetos de interesse de determinado juiz. Não é normal que ações sejam usadas como espadas de Dâmocles, e ainda menos normal que juristas, jornalistas, políticos e outras personalidades não vejam problema algum nisso. O enorme silêncio diante do potencial uso do novo entendimento sobre o foro privilegiado como meio de pressão política, por medo, conivência ou concordância – inclusive com a possibilidade de se “ressuscitar” processos já encerrados e tramitados em julgado –, contribui ainda mais para a corrosão da democracia.