A suspensão do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do porte de maconha a pedido do ministro Gilmar Mendes, na última quarta-feira, causou surpresa.
Até agora, os quatro ministros que já votaram defenderam a descriminalização, defendida inclusive por Gilmar, que é o relator do caso – e a tendência é que a tese seja aprovada.
Mas a “ala progressista” do STF detectou uma “ameaça” que fez Gilmar pedir para parar o debate, citando a necessidade de “alinhar” os detalhes dos votos pela descriminalização: o risco de um pedido de vista da “ala conservadora da corte”, provavelmente o ministro André Mendonça, indicado por Jair Bolsonaro ao STF, travar a conclusão do julgamento.
Isso barraria o avanço da “pauta de costumes” no STF. A discussão da descriminalização da maconha se arrasta desde agosto de 2015 na Suprema Corte.
Para tentar anular os efeitos de um eventual pedido de vista de Mendonça, está sendo combinada uma antecipação dos votos dos outros ministros.
Nos bastidores da Corte, a expectativa é a de que ao menos Rosa Weber e Cármen Lúcia também se posicionem pela descriminalização, garantindo os seis votos necessários para formar maioria (o STF tem onze ministros). Em janeiro deste ano, durante as férias do STF, Rosa derrubou a prisão de um homem que havia sido detido com 49 gramas de maconha.
Rosa, que é presidente do STF, vai se aposentar e deixar a Corte no final de setembro, mas já avisou aos colegas que faz questão de dar o seu voto antes de sair.
É uma forma de ter o seu voto computado mesmo que o desfecho do processo fique para depois.
Dessa forma, ainda que os outros cinco ministros do tribunal sejam contra a descriminalização – Toffoli, Fux, Kassio e o recém-chegado Zanin, além do próprio Mendonça – já estaria formada maioria pela descriminalização, o que diminui os efeitos de um eventual pedido de vista.
Mas o pedido de suspensão do julgamento por Gilmar tem também outra função: unificar o entendimento do grupo que defende a descriminalização sobre as nuances da regulamentação do porte de drogas para uso pessoal.
Isso porque os quatro ministros que já votaram a favor da descriminalização – Gilmar, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin) divergem sobre como fixar as quantidades limites de porte de drogas que distinguem um usuário de um traficante, e as circunstâncias que configurariam uso pessoal e recreativo, diferentemente do que deveria ser considerado tráfico.
Para evitar que esse tipo de discordância atrapalhe a aprovação da descriminalização, Gilmar Mendes também vai buscar construir uma solução de consenso antes que a votação recomece.
Geralmente, esse tipo de construção, comum em casos de natureza complexa, fica para o fim do julgamento. É quando os os integrantes da Corte buscam uma espécie de “voto médio”, ou seja, uma posição que contemple os diferentes pontos de vista.
O adiamento ainda pode servir para que o Supremo prepare o terreno para uma votação que desagradou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. No plenário da Casa, logo após a sessão, Pacheco disse que o julgamento é um “equívoco grave” e uma “invasão de competência” no Poder Legislativo.
Um dos nós da discussão é que, como a lei em vigor desde 2006 no Brasil não distingue usuário de traficante, quem acaba fazendo essa definição são os próprios policiais ao registrar o boletim de ocorrência.
Na última quarta-feira, o ministro Alexandre de Moraes, baseando-se em um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria, a ABJ, propôs um teto de 60g de maconha ou seis plantas fêmeas para que as pessoas sejam consideradas usuárias de maconha.
Mas fez ressalvas: os policiais não ficariam impedidos de prender por tráfico mesmo em caso de uma quantidade menor, se houvesse outros elementos que poderiam confirmar não se tratar de um usuário. Seria o caso, por exemplo, de alguém com 10g de uma série de drogas flagrada na porta de uma boate, vendendo uma pequena quantidade de uma variedade de entorpecentes.
Em seu voto, Moraes mencionou o tratamento assimétrico das autoridades do Estado de São Paulo no enfrentamento da questão: os policiais da capital costumam considerar tráfico de drogas o porte de 33g de cocaína, 17g de crack e 51,2g de maconha. Só que no interior, os critérios são muito mais rigorosos: o porte de 20g de cocaína, 9g de crack e 32,1g de maconha é enquadrado como tráfico de drogas.
Ou seja: um sujeito flagrado com 35g de maconha, por exemplo, é considerado traficante no interior de São Paulo, mas usuário na capital paulista.
Relator do caso, Gilmar votou em 2015 para descriminalizar o uso de qualquer droga, mas não fixou parâmetros para diferenciar o usuário do traficante. “A criminalização da posse de drogas para consumo pessoal afeta o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”, disse o ministro à época.
Naquele mesmo ano, Edson Fachin defendeu a descriminalização apenas da maconha. Já o ministro Luís Roberto Barroso percorreu um caminho similar ao de Fachin, já que o caso concreto em discussão envolve um homem pego com 3g de maconha em sua cela na cadeia.
Mas Barroso propôs algo que nem Fachin nem Gilmar haviam feito, fixando uma espécie de linha de corte para diferenciar o portador de maconha do traficante. Na proposta de Barroso, é considerado usuário aquele que tenha até 25 gramas ou seis plantas fêmeas.
Para Fachin, os critérios para diferenciar quem é traficante e quem é usuário devem ser definidos pelo Congresso Nacional, e não pelo próprio STF.