Não há como falar da política brasileira no século 21 sem dedicar um longo capítulo para a Operação Lava Jato, que completa dez anos de sua primeira fase no próximo dia 17.
Um resumo bem simplista da história recente do país a colocaria ao lado e na sequência de outros marcos do período, a partir de Junho de 2013: o impeachment de Dilma Rousseff, a vitória de Jair Bolsonaro e os ataques de 8 de janeiro de 2023.
Já vai longe, porém, o tempo em que a Lava Jato abalava presidentes, pressionava altas instâncias do Judiciário e ameaçava deixar em apuros expoentes do Congresso.
Mesmo sem novas investigações e distante da popularidade que ostentava anos atrás, o histórico da operação iniciada em Curitiba vive voltando ao noticiário e ao debate político, seja por críticas de seus antigos réus, seja por tentativas de punir autoridades da época por medidas tomadas naquele período ou ainda por desdobramentos que continuam em tramitação na Justiça até hoje.
Um dos seus mais incisivos críticos é também o seu principal alvo, o hoje presidente Lula (PT), que ficou preso por 580 dias em decorrência de condenação assinada pelo ex-juiz Sergio Moro, hoje senador pela União Brasil e sob risco de ter o mandato cassado no mês que vem pela Justiça Eleitoral.
Desde que voltou à Presidência, Lula já atribuiu à Lava Jato a “uma mancomunação” com os Estados Unidos e afirmou que, no período na prisão, pensava em “foder esse Moro”. Também chamou a força-tarefa do Ministério Público de “bando de moleques irresponsável”.
No STF (Supremo Tribunal Federal), que foi uma espécie de avalista das investigações em seus primeiros anos, o caso volta e meia retorna às discussões. Em 2022, por exemplo, o ministro Luiz Fux disse que ocorreu uma “anulação formal”, mas que o país não deveria esquecer que a corrupção existiu.
Já seu colega Gilmar Mendes afirmou em entrevista no ano passado: “Curitiba gerou Bolsonaro. Curitiba foi o germe do fascismo”. O ministro defende até a criação de uma “comissão da verdade” sobre abusos da operação.
Assunto dos mais polarizadores da história política do país, a Lava Jato também foi tema das últimas três eleições presidenciais.
Duas de suas antigas autoridades, Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol, se dedicam diuturnamente a rebater as acusações de que agiram de modo abusivo e tentam defender que houve um legado institucional na apuração do que chamam de “maior escândalo de corrupção da história”.
Apoiadores do lava-jatismo citam como argumentos a devolução bilionária de recursos desviados por construtoras, as confissões de dezenas de envolvidos e provas entregues via cooperação internacional.
Seus opositores veem uma cruzada que escolheu alvos, gerou um prejuízo econômico muito superior ao volume de recursos devolvidos, passou por cima de garantias constitucionais e criou a desordem política que desaguou nos ataques antidemocráticos em Brasília em 2023.
No ano passado, sob o governo Lula, entre outras medidas, a AGU (Advocacia-Geral da União) criou uma comissão com a tarefa de verificar se foram cometidas irregularidades na operação. Um evento na USP com advogados críticos da operação recebeu patrocínio estatal de Itaipu.
Pesa contra o lava-jatismo a adesão de Moro ao governo Bolsonaro, então recém-eleito, após ter sido responsável por conduzir dezenas de fases e por sentenciar Lula à prisão.
A saída do então juiz da magistratura, em 2018, para a nomeação a um cargo político foi um divisor da operação, comprometendo irremediavelmente a credibilidade das investigações e seu respaldo na cúpula do Judiciário.
Outro momento crucial para a derrocada da operação foi a revelação de conversas de Moro e dos procuradores, obtidas pelo site The Intercept Brasil e divulgadas também por outros veículos, como a Folha, em 2019.
Os diálogos mostraram proximidade entre o magistrado e a acusação, o que é ilegal. Até hoje as conversas dos procuradores por meio do aplicativo Telegram continuam a gerar repercussão no Judiciário. Em setembro passado, o ministro Dias Toffoli anulou o uso de provas do acordo da empreiteira Odebrecht em uma série de processos que ainda estavam pendentes pelo país.
O ritmo industrial de deflagração de fases pela Polícia Federal, à média de 1 a cada 3 semanas em seu auge, foi minguando até se esgotar completamente em 2021, após o encerramento das atividades da força-tarefa dos procuradores no Paraná.
Foram mais de 80 etapas da operação em Curitiba, embora o que se convencionou chamar de Lava Jato, envolvesse um conjunto de frentes muito além da centrada no Paraná. Desdobramentos se desenrolaram no STF, na Justiça Eleitoral, e em outros estados -principalmente no Rio de Janeiro.
Ao longo de anos, o país se habituou a testemunhar notícias de novas revelações quase diariamente, turbinadas por uma sequência que parecia inesgotável de delações dos envolvidos. O ministro do STF Teori Zavascki, primeiro relator do caso na corte, dizia que, na Lava Jato, os investigadores “puxam uma pena e vem uma galinha”.
A operação, que começou com uma apuração sobre uma rede de doleiros no Paraná, avançou por meio de uma série de relatos de delatores para a corrupção na Petrobras, um cartel de empreiteiras e posteriormente para pagamentos ilegais para partidos e políticos.
Como um tsunami, os efeitos da Lava Jato chegaram a outros países, principalmente a partir do acordo de colaboração da Odebrecht.
Além de Lula, ex-presidentes como José Sarney e Dilma Rousseff também foram denunciados -Fernando Collor acabou condenado pelo STF em 2023, mas ainda recorre em liberdade.
Passados dez anos, o ambiente institucional que possibilitou a deflagração da operação está completamente alterado.
Um dos fatores foi a mudança de ares no STF, que havia concedido amplo aval para a operação em seus primeiros anos. Em meio a embate com o bolsonarismo, a corte passou a rever posicionamentos, anulou antigas decisões e consequentemente enfraqueceu o conjunto de investigações.
Mudanças na legislação e na chefia do Ministério Público Federal também compuseram o cenário que hoje tornam improvável que uma nova Lava Jato surja.
Na época em que a operação ainda ostentava vasto apoio popular e institucional, com suas promessas de limpar a política, o professor de ciência política Bruno Pinheiro Wanderley Reis, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), afirmou em ensaio, em 2017, que a Lava Jato seria para o combate a corrupção o que o Plano Cruzado tinha sido para a inflação.
Nos anos 1980, o plano econômico, que ganhou enorme popularidade por conter a alta dos preços, acabou tendo efeito efêmero, e posteriormente o problema se agravou.
Hoje, Reis vê aquele momento como uma ocasião em que o país cometeu “haraquiri em público, interpretando como corrupção práticas indesejáveis que tinham sido legalizadas por legislação ruim” -em referência às doações eleitorais feitas por empresas e que estão proibidas desde 2015.
“Na hora em que há um espasmo demagógico em torno do tema corrupção, você produz o efeito de desestabilizar o sistema político, e aí fica todo mundo à deriva. Quando alguém é eleito em cima dessa atmosfera, o que faz é desmanchar controles. Foi claramente o que Bolsonaro fez, desorganizando todo o sistema.”
O professor diz que os procuradores “estavam serrando o galho institucional sobre o qual estavam sentados” e que é preciso “uma certa pacificação e estabilização política” para as instâncias de controle agirem com autonomia.
Reis também considera que o saldo da operação ainda é pensado “com uma benevolência que ela não merece”.
“Existe uma opinião muito disseminada: ‘O sistema era corrupto, foi uma tentativa’. Ela [Lava Jato] é irresponsável do início ao fim, mesmo se fosse bem-intencionada. No momento em que se permite violar regras para avançar a sua causa, ainda mais sendo um servidor público que tem obrigações, isso é a disseminação da cultura autoritária.”
Os efeitos eleitorais da Lava Jato antecederam a vitória de Bolsonaro, em 2018. Já na eleição municipal de 2016, quando a operação era um dos principais temas do noticiário, surgiram candidaturas tentando se promover pregando a distância da política. Venceram as disputas assim Alexandre Kalil (hoje no PSD), em Belo Horizonte, e João Doria (ex-PSDB), em São Paulo.
O professor de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco Marcus André Melo, afirma que as discussões sobre a Lava Jato não costumam levar em conta o contexto do país à época, citando que já existia previamente uma mobilização social pondo “a corrupção como questão central da agenda pública”.
Melo, que é colunista da Folha, menciona os esforços pela Lei da Ficha Limpa, em 2010, aprovada após a coleta de milhões de assinaturas, e o ineditismo do julgamento no STF do escândalo do mensalão. Lembra ainda da repercussão da anulação no Judiciário de grandes operações da PF anos antes, como a Castelo de Areia e a Satiagraha.
“Ou seja, a luta contra a corrupção não foi produto de alguns juízes e procuradores jacobinos. O tamanho da Lava Jato foi proporcional ao tamanho do problema, a magnitude do que estava em jogo. Era uma demanda da sociedade muito importante.”
O acadêmico afirma ainda que houve razões conjunturais para a Lava Jato ganhar a proporção que tomou. “O Brasil era naquela ocasião o país do mundo com o maior volume de obras públicas simultâneas, com exceção da China. Simultaneamente houve a construção de estádios da Copa de 2014, as Olimpíadas de 2016 e a descoberta do pré-sal.”
Melo também critica o debate centrado hoje nas figuras de Moro e Deltan. “Interessa um pouco a essa narrativa [de opositores da operação] individualizar. O Sergio Moro era só uma peça naquela engrenagem. Em larga medida, as decisões de Moro foram endossadas pelo TRF-4 [Tribunal Regional Federal da 4ª Região], pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça] e até pelo STF, que hoje mudou de posição.”
Sobre o desfecho dos processos, ele entende que houve uma “anistia judiciária”, que tem relação com o histórico de anistias concedidas em outros momentos no Brasil.