A AGU (Advocacia-Geral da União), órgão que representa o governo juridicamente, alegou ofensa à honra e à imagem da União em ação em que pede direito de resposta por desinformação sobre a atuação do poder público em meio à tragédia no Rio Grande do Sul (RS).
A fundamentação consta na peça ajuizada contra o influenciador e coach Pablo Marçal, devido a vídeos com declarações dele de que as Forças Armadas não estariam prestando auxílio no estado ou que estariam atuando de forma ineficiente.
A ação foi feita por meio da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, braço da AGU criado no governo Lula sob a justificativa de coibir desinformação. À frente da AGU está o advogado-geral da União, Jorge Messias.
Especialistas consultados pela Folha avaliam, em linhas gerais, que a argumentação de defesa da honra de ente público é problemática e que, caso ela seja acatada pelo Judiciário, poderá abrir precedente ruim para a liberdade de expressão.
Segundo a AGU, Marçal “causou danos à honra objetiva e à imagem de órgão da União, tendo abusado do direito à liberdade de expressão”.
A AGU argumenta que, apesar de historicamente esses direitos fundamentais “se relacionarem com os direitos do cidadão em face do poder público”, essa interpretação teria sido ampliada pela doutrina, passando a abarcar pessoas jurídicas.
Na sequência, para sustentar que tais direitos se aplicam não apenas a pessoas jurídicas de direito privado, como empresas, mas também ao poder público, a peça da AGU cita uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) em que foi reconhecida a possibilidade de indenização por danos morais ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
O precedente citado, entretanto, envolvia uma fraude de valores vultuosos. Na decisão, inclusive, os magistrados fazem uma diferenciação do caso analisado frente aos anteriores. Um deles envolvia, por exemplo, ação indenizatória de município por programas de rádio e TV locais que faziam críticas ao governo da cidade.
“Nesses precedentes estava em jogo a livre manifestação do pensamento, a liberdade de crítica dos cidadãos ou o uso indevido de bem imaterial do ente público”, diz o acórdão do STJ. Segundo a corte, entendimento contrário
“constituiria subversão natural dos direitos fundamentais”.
Na representação da AGU são transcritos dois trechos de falas de Marçal reproduzidas em dois links em perfis de terceiros.
“Eu num (sic) entendo é porque um empresário sozinho tem mais helicóptero lá do que a Força Aérea Brasileira. Até agora não entendi o que é que esse presidente tá fazendo”, diz o coach em um deles.
No outro trecho, ele afirma que “gente que tem Exército na mão, gente que tem navio de guerra, não dá conta de fazer nada”, repete então que um empresário sozinho enviou mais aeronaves que a FAB e que é “civil salvando civil”.
No texto que o órgão sugere que deveria ser publicado por Marçal constam, entre outros itens, informações sobre a quantidade de aeronaves, viaturas, lanchas, botes e outros equipamentos empregados pelas Forças Armadas no RS.
“Não condiz com a realidade a omissão atribuída às Forças Armadas brasileiras no enfrentamento emergencial aos danos causados pelas enchentes no Rio Grande do Sul, assim como os números de helicópteros e aeronaves disponibilizados especificamente pela Força Aérea Brasileira”, prossegue.
Ana Laura Pereira Barbosa, pesquisadora da FGV Direito SP e professora de direito da ESPM, ressalta que a liberdade de expressão não é irrestrita. Ela entende, entretanto, que presumir que entidades do poder público tenham direito a honra não é uma boa forma de lidar com desinformação.
“Quando o STJ lidou com casos relacionados a manifestação de opiniões pelos indivíduos, ele entendeu que não existia um direito à exigência de indenização por danos morais por parte de pessoas jurídicas de direito público”, diz Ana Laura, que destaca que o caso do INSS foi estabelecido de forma excepcional e conectada a consequências ao patrimônio do órgão.
Carlos Affonso Souza, advogado e diretor do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade), avalia que, como os precedentes do STJ tratavam de indenização, ao pleitear apenas direito de resposta, a AGU poderia estar buscando se distanciar um pouco desses casos.
Ele vê com receio uma eventual banalização deste tipo de ação. “Na maior parte das vezes, vai estar se falando de uma situação de desequilíbrio de forças entre um particular e o poder público”, diz.
Anderson Schreiber, que é advogado e professor de direito da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da FGV Direito Rio, defende que, em tese, seria possível pleitear direito de resposta em determinadas situações, mas é crítico do fundamento na honra.
“Acaba gerando uma impressão de que o problema é criticar o poder público. O problema não é criticar o poder público. O problema é atribuir fato objetivamente falso ao poder público”, diz.
Na ação contra Marçal, a AGU argumenta que a extensão do direito à imagem e honra objetiva às entidades do poder público seria compatível com a natureza delas, por representarem “os interesses de toda a coletividade de pessoas, verdadeira titular desses direitos”.
“Não se pode negar à sociedade (ente público) o direito ao correto entendimento de suas ações, à respeitabilidade de suas instituições, à veracidade das informações acerca de seus atos, ou seja, o direito à boa reputação do poder público”, diz.
O órgão diz ainda que Marçal “extrapola a liberdade de crítica e opinião, tendo em vista que, de forma intencional, descontextualiza os fatos”. Para justificar tal ponto, entretanto, diz apenas que “a intencionalidade da disseminação da desinformação está evidenciada sobretudo diante da prestação de informação oficial pela FAB, em seu sítio eletrônico”.
Ivar Hartmann, professor de direito do Insper, considera ruim que o órgão cite desinformação, mas não explique qual conceito está utilizando, dado que não há definição na legislação brasileira.
Assim como os demais especialistas consultados, ele vê como insuficiente a simples menção à existência de site do poder público para comprovar a intencionalidade no ato de disseminar uma informação falsa.
“Uma questão crucial em relação à própria prática de desinformação é o conhecimento sobre a falsidade”, diz Hartmann.