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Facções criminosas usam artistas do funk para fazer propaganda e recrutar jovens para o crime

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As facções criminosas cariocas Comando Vermelho (CV) e Terceiro Comando Puro (TCP) vêm diversificando a disputa territorial no Estado do Rio de Janeiro para além do domínio de favelas e pontos de venda de drogas. Agora os grupos travam também uma guerra cultural. Cantores de funk, rap e trap, que ganharam fama local fazendo apologia ao crime em bailes financiados pelo tráfico, estão escolhendo lados na disputa de facções e sendo usados por elas para aumentar a influência e recrutar jovens.

Um artista ligado a uma determinada facção criminosa não pode cantar em um “baile” de uma facção rival. As letras das músicas retratam uma vida fácil, com abundância de riqueza e cheia de aventuras supostamente desfrutada por membros do crime organizado. Segundo analistas ouvidos pela reportagem, as facções financiam artistas e eventos musicais em uma tentativa de recrutar jovens para suas organizações criminosas.

O debate sobre a música que faz apologia ao crime entrou na esfera política recentemente com a criação dos chamados projetos de lei “anti-Oruam” – em referência ao nome artístico do cantor de trap Mauro Nepomuceno, filho do traficante carioca Márcio Nepomuceno, o Marcinho VP, que está preso. Os projetos visam proibir o uso de dinheiro público para a contratação de shows musicais que fazem apologia ao crime ou ao uso de drogas.

Eles já foram apresentados em mais de 80 cidades, contam com o apoio de 130 parlamentares e têm rendido dividendos políticos para seus autores. Nesta semana, um projeto de lei “anti-Oruam” chegou à Câmara dos Deputados, em Brasília, pelas mãos do deputado Kim Kataguiri (União-SP).

O nome genérico “anti-Oruam” dado a esses projetos de lei foi criado pela vereadora de São Paulo, Amanda Vettorazzo (União). “As organizações criminosas dominam nossa sociedade e estão em diversos espaços. Na música, entendo que a influência que artistas tem sobre jovens é imensa”, disse ela à Gazeta do Povo.

Ela disse que a ideia de seu projeto é fazer um contraponto “à ideia que artistas que promovem o crime organizado passam: de que a vida no crime é onde o jovem vai conseguir atingir o sucesso”.

Cantor diz que leis “anti-Oruam” atacam os gêneros musicais funk, rap e trap; vereadora afirma que foi ameaçada

A vereadora Amanda Vettorazzo usou o nome do cantor Oruam para apelidar seu projeto de lei em razão dela afirmar que o artista “é um dos maiores símbolos da apologia ao crime”, citando sua participação festival Lollapalooza, em São Paulo, onde ele defendeu a libertação de seu pai. Além disso, ela contesta o fato de o artista possuir uma tatuagem em homenagem ao seu tio de consideração, o traficante “Elias Maluco”, responsável por torturar e esquartejar o jornalista Tim Lopes.

Não há evidências de que Oruam tenha recebido dinheiro público para se apresentar em São Paulo, mas o evento Virada Cultural de 2024 destinou cerca de R$ 650 mil para artistas que têm músicas que fazem apologia ao crime em seu repertório. A reportagem não conseguiu confirmar se essas músicas foram apresentadas ou não no evento. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse apoiar o projeto de lei de Amanda Vetorazzo, apesar de desconhecer Oruam.

O cantor, por sua vez, recebeu com indignação a proposta apresentada pela vereadora paulista e respondeu nas redes sociais: “Nós cantamos o que vivemos. Até se proibir, nós vamos cantar. Nós somos o ódio”. Ele afirmou à CNN Brasil que as leis propostas são uma tentativa de criminalizar todo um gênero musical. “Vocês não entendem que a lei anti-Oruam não ataca só o Oruam, mas todos os artistas da cena”, disse.

O deputado Kim Kataguiri disse que a lei que apresentou na Câmara não quer proibir a composição ou divulgação das músicas, mas somente impedir o financiamento público de shows onde elas sejam apresentadas. Amanda Vetorazzo disse que seu projeto tem como principal objetivo proibir verba pública a “shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil” que contenham menções ao crime organizado e ao tráfico.

A vereadora Amanda disse que passou a receber ameaças até de cunho sexual após apresentar seu projeto de lei. Ela disponibilizou o texto do projeto em um site de internet para qualquer vereador ou deputado que desejar apresentá-lo em sua cidade ou estado.

A reportagem fez contato com Oruam para comentar as acusações por meio do número de telefone disponibilizado por sua gravadora, mas não obteve retorno.

Cantores não podem se apresentar em áreas controladas por facções rivais

As facções criminosas não controlam apenas territórios. Especialmente no Rio de Janeiro, possuem símbolos e lemas e fazem questão de entrar na cultura do funk e dos bailes – fomentando as rivalidades com seus inimigos por meio da música. Um artista de determinada facção não pode cantar em um “baile” rival. Em casos mais extremos, as situações vão além das fronteiras do Rio de Janeiro e precisam de intervenção do poder público.

É o caso de alguns dos shows de Marlon Brandon Coelho Couto Silva, mais conhecido como MC Poze do Rodo, funkeiro de sucesso e ex-traficante confesso do Comando Vermelho. Em 2021, Poze teve um show em Salvador proibido pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia. A decisão foi motivada por ameaças de traficantes de organizações criminosas rivais de promover violência no evento se ele ocorresse. O mesmo aconteceu em Fortaleza. Já em São Paulo, o cantor sofreu ameaças após ofender o Primeiro Comando da Capital (PCC).

Ele alega que largou a vida criminosa para viver uma vida “mais tranquila” na música. Afirmou em algumas ocasiões que diz aos fãs que “o crime não leva a lugar nenhum”. A reportagem tentou fazer contato com Poze do Rodo por meio de contatos disponibilizados em seu site oficial, mas não recebeu retorno sobre os questionamentos.

Segundo a delegada Flávia Monteiro de Barros, chefe da 127ª delegacia de Búzios (RJ) que já atuou em casos envolvendo facções e bailes funk, disse que as músicas de cantores ligados a facções são atraentes para jovens de comunidades pobres porque retratam uma vida fácil.

“Os bailes funks funcionam como refúgios de prazer para a comunidade e também um mundo ilusório para as pessoas que veem de fora. As letras dos funks demonstram uma nova possibilidade de ganhar a vida fácilmente, através do tráfico de drogas e armas”, disse.

Ela disse que músicas de Poze do Rodo fazem apologia à facção Comando Vermelho. “O cantor em suas letras incita a violência, o tráfico de drogas, promove a facção criminosa a que faz parte, participa de shows pagos pelo tráfico e, quando é convidado para cantar em alguma localidade onde a facção é diversa, fica sendo hostilizado e acaba sendo proibido de cantar”.

O ideal ilusório da “ascensão fácil” é uma das maneiras de atrair jovens, sobretudo aqueles em situações mais precárias, segundo a delegada. O fenômeno pode ser distinto para as mulheres, que raramente estão na linha sucessória do crime organizado e encontram espaço na arte em músicas pautadas na liberdade sexual feminina – que muitas vezes têm por princípio a erotização de seus corpos.

De acordo com ela, outro fator preocupante é a exposição que essas músicas têm entre menores de idade. Além da apologia ao crime, há a possibilidade de que as canções contribuam para a sexualização precoce de crianças.

Funk mudou e se popularizou no Rio

Popularizado no fim da década de 1970, o funk carioca nasceu nos subúrbios e favelas do Rio de Janeiro com a alegada missão de trazer cultura para a camada mais pobre da sociedade. Em seus primórdios, as canções faziam alusões à vida na favela: cotidiano, orgulho, dificuldades, sentimentos e críticas à falta de serviços básicos por parte Estado e, por vezes, à ação da polícia.

O uso de palavrões nas letras não era comum, muito menos alusões ao crime organizado. Com o tempo, o gênero musical foi ganhando notoriedade e espaço na zona sul do Rio – área nobre da cidade.

Nos anos 90, uma das músicas do gênero de mais sucesso, o “Rap da Felicidade”, dos artistas Cidinho e Doca abordou adversidades encontradas no cotidiano dos morros e a necessidade da busca da felicidade, mesmo enfrentando o duro cotidiano. O famoso refrão entoava: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”.

Anos depois, as principais canções do funk carioca e nacional passaram a incluir em suas letras menções ao uso de entorpecentes, incentivo a condutas criminosas incluindo tráfico de drogas, de armas e um discurso de ódio que visa atingir as forças de segurança.

O hit de funk mais ouvido em 2024 na plataforma Spotify, a canção “The box medley funk 2” faz alusões a ascendência social citando o nome de marcas de grife, ao uso e drogas como lança perfume, maconha, e o sexo explícito. A canção conta com mais de 300 milhões de visualizações e foi produzida por artistas paulistanos. Hoje o gênero alcança rádios e públicos de todo o Brasil.

Para Paulo Storani, antropólogo, especialista em segurança pública e capitão da reserva do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio), a mudança sofrida pelo gênero musical nas últimas cinco décadas acompanha a “degradação dos valores morais da sociedade”.

Ele afirma que entre os anos de 1970 e 1990 havia “uma grande produção musical, com uma qualidade que hoje nós não conseguimos encontrar”. Segundo ele, atualmente é necessário “um movimento de inflexão nesse declínio moral que vivemos, que afeta a expressão artística”.

De acordo com Storani, cresce a ideia de que o traficante ou criminoso que faz sucesso e ascende economicamente pode ser considerado um exemplo.

“Grandes figuras do tráfico de entorpecentes, do crime organizado, passaram a ser modelos vitoriosos, que se deram bem, que estão ganhando dinheiro com isso, festejados”, afirma.

Estado paralelo oferece eventos culturais acessíveis em comunidades pobres

A ausência de opções culturais públicas e privadas em comunidades pobres e favelas faz com que o poder paralelo do crime organizado tome para si o papel da promoção cultural nestes espaços, de forma aparentemente gratuita. Mas ela vem acompanhada de propaganda das facções, segundo analistas.

De acordo com o especialista em segurança pública e major na Polícia Militar do Distrito Federal, Luiz Fernando Ramos Aguiar, é comum que criminosos financiem artistas e bailes funk. O objetivo é fortalecer a imagem dos criminosos como defensores e benfeitores das regiões onde atuam.

Assim, os jovens se sentem de alguma maneira representados nos bailes e alguns acabam ingressando no grupo criminoso.

Em outra frente, a música produzida por esses artistas também se populariza em seguimentos da classe média que aceitam o conceito do pobre se tornar bandido por ser vítima da sociedade. Muitas produções e produtoras também são apoiadas e patrocinadas por diferentes tipos de empresas, incluindo cassinos virtuais.

Um dos hits mais polêmicos de 2022, que menciona venda de drogas, conta mais de 100 milhões de visualizações e é patrocinado por uma casa de apostas virtuais. No videoclipe da canção, é possível ver os artistas utilizando o aplicativo de apostas. Um dos rappers se assemelha a um soldado do tráfico, aparecendo em uma laje no alto do morro, com um radiocomunicador nas mãos e uma mochila nas costas.

As leis “anti-Oruam” estão começando a tramitar no Poder Legislativo pelo país e devem levar a embates ligados à liberdade de expressão em contrapartida à apologia ao crime. Uma das primeiras câmaras municipais a aprová-la foi a de Cruzeiro, no interior de São Paulo, e o modelo pode ser discutido na esfera federal.