Às vezes, Maurício Kubrusly, de 79 anos, se pergunta o que está fazendo “naquele fim de mundo” em Serra Grande, no litoral sul da Bahia, ao lado da esposa Beatriz, de 63 anos. Mas é só dar uma volta na paradisíaca Praia do Sargi, dar um mergulho no mar para ele agradecer pela escolha.
A saída de São Paulo foi a solução encontrada para tentar frear os avanços da demência frontotemporal, diagnosticada em 2016. Com o passar do tempo, a doença deixa sequelas. Foi aí que a família aceitou abrir a intimidade para o documentário “Kubrusly: mistério sempre há de pintar por aí”, do Globoplay, lançado hoje.
O célebre jornalista já não lê, ou escreve, e perdeu boa parte da memória. Quando assiste às próprias reportagens, dá risadas, mas acaba sempre se surpreendendo quando descobre que foi ele quem as fez. O passatempo favorito mesmo acaba sendo se relacionar com a música.
Ele, que foi crítico relevante no país, parece ouvir sempre pela primeira vez os hits que gostava. E não deixa de elogiá-los. Estes momentos, aliás, são o ponto alto da obra. Mas mais do que uma descrição da rotina, o documentário serve como uma boa homenagem e também uma forma de ampliar o debate sobre a doença. Destacamos alguns momentos imperdíveis da produção. Confira!
‘Você me ama ainda?’
O único nome que Kubrusly lembra, além do dele, é o de Beatriz, a esposa. “Isso é forte”, ela diz. No doc, há os dois se divertindo com mergulhos na piscina e no mar, um pouco da história do casal (eles se conheceram num bate-papo online) e momentos fofos em meio aos cuidados. “Você me ama ainda?”, pergunta Kubrusly, repentinamente.
“Sim!”, diz Beatriz, empolgada, ouvindo logo a comemoração do jornalista. No fim do longa, o casal caminha pela praia. “Você me acha bonito?”, ele pergunta. “Mais ou menos”, responde Bia, caçoando. “Eu não sou feio”, conclui Kubrusly. “Somos dois feinhos que se gostam”, diz ela, ganhando boas risadas.
Vida com trilha sonora
Todas as músicas presentes fizeram parte da vida do jornalista de alguma forma e é lindo vê-lo se divertindo com tudo como se fosse a primeira vez. “Vai entender por que. Nunca saberemos”, conclui ele do nada, depois de ouvir uma canção. A equipe do doc também promoveu um encontro com Gilberto Gil, já que a música “Esotérico” é uma das poucas que Kubrusly ainda se lembra.
“Que lindo isso. Quem canta?”, pergunta ele, arrancando risadas. O cantor lê ainda uma crítica feita pelo jornalista no passado, que se surpreende ao descobrir que tinha escrito aquilo.
“Não foi você, mas foi você. Kubrusly era um observador profundo, sabia dizer o que sentia”, diz Gil. Também é legal a visita do cantor e amigo Wandi Doratiotto, da banda Premeditando o breque. Quando o artista canta, Kubrusly sibila um dos versos: “O urubu se apaixonou pela asa delta”.
Laudo médico
O médico de Kubrusly mostra o cérebro do jornalista, afetado pela doença.
“O lado esquerdo tem a ver com a linguagem, o lado direito com a tensão ao ambiente. Como o direito é menos comprometido, isso tem a ver com a ausência da agressividade, e também deve estar relacionado ao interesse dele pela musicalidade”, explica o neurologista Mateus Trindade.
Mostrar esse lado do diagnóstico fez parte também da negociação da mulher para aceitar o documentário e, assim, colocar ainda mais a doença em debate.
“Eu tinha uma cobrança carinhosa das pessoas (para falar do paradeiro do marido). Depois da reportagem do ‘Fantástico’, muitos me agradeceram. As pessoas têm um pouco de vergonha. Eu mesma fico, às vezes, sem saber o que fazer em algumas situações. ‘Será que ele vai se comportar?’, me pergunto. A sociedade não gosta de ser interrompida na sua lógica”, constata Beatriz.
Confusão mental
Justamente por só saber o nome da esposa, Kubrusly a chama o dia todo.
“Tem horas que finjo que dormi, para ele dormir também”, entrega Beatriz. Em uma das cenas, ela, que é arquiteta, sai para trabalhar, enquanto o jornalista fica com uma cuidadora. Sem entender, ele segue para o portão, tenta abri-lo e grita pela amada, até ser convencido de que ela voltará em breve. Há ainda trechos que mostram outros cuidados para tranquilizá-lo.
Na época das filmagens, eles estavam mudando de casa. “Repito a posição de objetos desde a primeira casa, colocando uma cômoda perto dele, onde estão coisas pessoais, para dar uma segurança e conforto. Não sei se funciona, mas tento”, explica a esposa.
As reportagens da vida inteira
O documentário exalta a carreira de Kubrusly antes e depois do “Fantástico”. Antigos colegas destacam o lado inventivo, curioso e o tempo todo o descrevem como “enciclopédia humana”, enfatizando que ele era dono de “uma memória absurda”. O jornalista aparece vendo algumas de suas reportagens e dando risada, sem reconhecer que era o responsável por elas. “Maurício vinha com cada ideia”, diverte-se um ex-chefe do “Fantástico”, emendando logo com o arquivo do dia em que Kubrusly acompanhou o ensaio de Carla Perez para a Playboy, feito no Pelourinho, em Salvador. O doc também entrega que a família está escrevendo um livro biográfico. “Ele sonhava conhecer todos os estados do país e conseguiu isso, depois de dez anos no ar”, será uma das frases impressas.