“Estando o São Paulo interessado em contratar o senhor Béla Guttmann, solicitamos a Vossa Excelência determinar que, por esse ministério, sejam colhidas informações a respeito da capacidade técnica e da idoneidade moral do referido cidadão.”
Esse é um trecho da carta enviada pelo então presidente do São Paulo, Cícero Pompeu de Toledo, ao ministro de Relações Exteriores, José Carlos de Macedo Soares.
Ele queria informações precisas sobre o húngaro Béla Guttmann, oferecido por empresários, para treinar o clube em março de 1957.
Há 65 anos, já existia xenofobia. Como se os treinadores estrangeiros não pudessem trabalhar nos grandes clubes e, muito menos, na seleção. Por mais que ingleses, uruguaios, argentinos e paraguaios tenham até conquistado títulos, sempre foram rejeitados por jornalistas e questionados por seus colegas sobre a necessidade de contratar técnicos “gringos”, que não entenderiam a mentalidade do jogador brasileiro.
E que o esquema WM, o 3-2-2-3, que formavam as duas letras, “visto de cima”, era o ideal para o futebol e ponto-final.
As inovações europeias eram acompanhadas por poucos privilegiados. Os que tinham dinheiro e sabiam outros idiomas para comprar e ler revistas importadas.
Béla Guttmann, um treinador nômade, que viajava o mundo atrás da melhor oferta, nada tinha feito na vida que o impedisse de trabalhar no São Paulo, deu o seu aval o Ministério de Relações Exteriores. O presidente do país era o mineiro Juscelino Kubitschek, mais interessado em construir Brasília, rasgar o Brasil com estradas e modernizar a indústria automobilística do que em qualquer outra coisa.
Béla Guttmann, campeão com o São Paulo em 1957. Foi fundamental na conquista da Copa de 1958
SÃO PAULO
E mesmo enfrentando a resistência de jornalistas e treinadores brasileiros, o húngaro revolucionou o futebol deste país. Fez do São Paulo campeão paulista, o que quase significava campeão nacional. Na campanha histórica, ele teve a ousadia de impor o esquema 4-2-4, com variação tática para 4-3-3. Dando muito mais equilíbrio sem a bola e ataques em bloco, na retomada.
Guttmann se cansou da resistência, das críticas. E quando o São Paulo não quis mais seguir pagando em dólares, mas em cruzeiros, ele aceitou a proposta do Porto e foi vencer o Campeonato Português.
Mas o Brasil deve o primeiro título da Copa do Mundo de 1958 ao húngaro. Porque o treinador era Vicente Feola, seu esperto auxiliar, que copiou seu esquema e a variação tática, usando Zagallo como quarto homem do meio-campo.
Jorginho nega favoritismo com a vantagem do Atlético-GO sobre o Corinthians na Copa do Brasil, mas espera dificuldade em jogo de volta: “Será uma guerra”
Jorginho nega favoritismo com a vantagem do Atlético-GO sobre o Corinthians na Copa do Brasil, mas espera dificuldade em jogo de volta: “Será uma guerra”
Os ataques sistemáticos ao trabalho do português Abel Ferreira por parte de técnicos brasileiros como Cuca, Mano Menezes e, principalmente, Jorginho, seguem o mesmo caminho de 65 anos atrás.
O treinador do Palmeiras, atual bicampeão da Libertadores, campeão da Copa do Brasil, da Recopa Sul-Americana e paulista, decidiu não responder aos ataques. Principalmente do ex-lateral tetracampeão do mundo.
“O Abel é muito bom treinador e ponto-final. Não está em discussão a questão da capacidade dele. O que está em discussão, principalmente nessa situação, é que ele não descobriu o futebol. Nós não estamos na época que portugueses estão vindo para cá e descobrindo o futebol, esquece! O que aconteceu com o Jorge Jesus foi extraordinário, o que está acontecendo, mas é porque tem um elenco como o Flamengo e como o Palmeiras.”
Jorginho segue na sua cruzada contra treinadores estrangeiros. Principalmente Abel Ferreira
ATLÉTICO
Jorginho é técnico há 17 anos. Já treinou Flamengo, Vasco, Kashima Antlers, Coritiba, Cuiabá, Atlético Goianiense. O único título significativo que venceu foi o Carioca de 2016, com o Vasco. Foi auxiliar de Dunga na Copa de 2010, na África do Sul, e é apontado como o responsável pelo isolamento do time brasileiro. E pelo plano tático 4-2-3-1, que fracassou nas quartas de final, diante da Holanda.
A direção do Palmeiras já ameaçou processar jornalistas por conta de ataques que considerou pura xenofobia. Ou seja, preconceito contra estrangeiros.
Jorginho passa a ser um nome com as portas fechadas no clube.
De acordo com dirigentes que trabalham com a presidente Leila Pereira, outra vez o técnico do Atlético Goianiense ataca Abel, usando o fato de ter nascido em Portugal.
Conselheiros insistem que os treinadores nacionais têm Abel como alvo por pura inveja dos seus resultados.
E medo que o mercado brasileiro acabe ainda mais aberto a técnicos do exterior.
Em junho, o clube já havia se manifestado contra Jorginho, pelas críticas que fez a Abel Ferreira, por desrespeitar árbitros. E já fazia questão de enfatizar que ele é português.
A nota oficial do Palmeiras foi dura.
“A nossa história de 107 anos foi construída por jogadores, profissionais e torcedores de diferentes nacionalidades e etnias, sem distinção. Portanto, não toleramos declarações preconceituosas que incitem a aversão a estrangeiros. Nossos gramados não são feudos reservados a pessoas de um só país. Pelo contrário, neles há espaço para todos que tenham vontade e capacidade de melhorar o futebol brasileiro.”
Béla Guttmann não teve o apoio escancarado do São Paulo, na época em que seu trabalho foi questionado, principalmente ao chegar ao Brasil.
Depois, na briga por seguir recebendo em dólares, o clube acreditou que já poderia dispensá-lo. O seu assistente Vicente Feola, metódico, havia copiado todos os seus treinadores e princípios táticos.
Que usou na Copa do Mundo de 1958, quando o Brasil foi campeão pela primeira vez. Não comandou a seleção em 1962, por estar doente. Mas Aymoré Moreira, seu substituto, seguiu muitos dos princípios táticos de Guttmann.
Vicente Feola. Mesmo esquema tático e até treinamentos de Béla Guttmann. Brasil campeão
CBF
Quando Feola voltou a comandar o Brasil, no Mundial de 1966, a estratégia de 12 anos antes estava ultrapassada, principalmente pelo surgimento do futebol-força. Com muitas faltas e intensidade na marcação. A seleção foi eliminada ainda na fase de grupos, na Inglaterra.
Béla Guttmann nunca mais voltou a trabalhar no Brasil.
Mas ficou na história.
Pelo título paulista do São Paulo, que só voltaria a ser campeão 13 anos depois.
Lembrado, com justiça, pela conquista da primeira Copa do Mundo.
E pelos ataques de xenofobia.
Há 65 anos.
Abel Ferreira pode se consolar.
Não é o primeiro a sofrer por não ter nascido no Brasil.
E ser um treinador vencedor…