Cerca de 45 minutos de helicóptero separam a cidade de Tabatinga, na Tríplice Fronteira Amazônica, da pequena comunidade de Ipiranga, às margens do Rio Içá, na divisa do Brasil com a Colômbia e o Peru. Naquela região, de condições sanitárias precárias, o Exército é o único sinal de que o Estado talvez exista para as 350 pessoas que vivem em palafitas e barracos improvisados. É véspera de Páscoa, e muitas das crianças do vilarejo vão receber um bombom de chocolate pela primeira vez na vida depois de uma campanha de arrecadação de Ana Ribeiro, esposa do comandante do 8º Batalhão de Infantaria de Selva, lotado a 147 km de distância.
A rotina dura, sem fonte de renda fixa ou qualquer perspectiva de ascensão social, catalisa as possibilidades de o crime organizado cooptar os moradores da região. De posição estratégica para que colombianos e peruanos, os dois maiores produtores de cocaína do mundo, transportem os entorpecentes Brasil adentro até a exportação para a Europa, Ipiranga é guarnecida pelo 2⁰ Pelotão Especial de Fronteira (PEF) do Exército, um conjunto de militares que se desdobra para vigiar as fronteiras do país, fazer as vezes da polícia na divisa do Brasil com seus vizinhos e combater o narcotráfico e o comércio de animais silvestres que teimam em utilizar o Içá como rota de todo tipo de ilícito.
As instalações simples do pelotão dão concretude ao desafio de patrulhar uma fronteira tão extensa e com recursos contados. As calçadas do PEF, que emula uma mini vila com restaurante, capela e casas simples para os militares e seus familiares, estão esburacadas. Os quartos e banheiros, limpos, têm estruturas extremamente modestas. Oitenta por centos dos militares do PEF são temporários, homens que, depois do serviço militar obrigatório, são contratados pela caserna. Por ordem da cúpula do Exército, as instalações daquele trecho de fronteira foram escolhidas recentemente para enfim passar por reformas urgentes.
Ipiranga é também um dos mais de 20 pelotões especiais de fronteira do Exército e conta com metralhadoras belgas Mag 762, utilizadas pelas Forças Armadas brasileiras desde os anos de 1960, e pelas temidas .50, que pelo poder de fogo são capazes de furar blindagens e jogar um helicóptero no chão. Pela alta capacidade destrutiva, as .50 são hoje também utilizadas por criminosos na chamada Rota Solimões, que como mostra a edição de VEJA que chega neste fim de semana às bancas e plataformas digitais, é um dos caminhos mais lucrativos para traficantes escoarem toneladas de pó em direção à Europa.
VEJA acompanhou um dia na rotina do 2º PEF de Ipiranga. São treinamentos com metralhadoras, patrulhas fortemente armadas pelo rio Içá, atendimentos médicos a comunidades indígenas e abordagens de ribeirinhos em busca de informações que fechem o cerco contra criminosos. Para tentar ludibriar soldados menos experimentados, não raro mulas do tráfico jogam objetos flutuantes na água para desviar a atenção dos seguranças de plantão enquanto tentam transportar o droga por outras trilhas. não costuma funcionar. Ainda assim, cercado por trilhas de fuga no meio da floresta, o vilarejo de Ipiranga é o esconderijo perfeito para criminosos que acabaram de cruzar a fronteira. Como conhecem muito bem a região, conseguem facilmente sobreviver por 15 dias selva adentro sem serem localizados, disse a VEJA um militar.
Nos últimos meses, a rota preferencial para a desova de cocaína foi identificada exatamente no rio Içá, um dos afluentes do Solimões: traficantes atracam pequenas embarcações a poucos metros de um ponto fixo de fiscalização, transportam o carregamento de dezenas de quilos por terra, dentro da mata fechada, e encontram comparsas em postos de apoio quilômetros adiante, longe do risco de serem importunados. O montante final é reunido às toneladas em esconderijos na floresta antes de serem despachados para o exterior.
É época do chamado inverno amazônico, quando as calhas dos rios mais caudalosos, inundadas, criam hidrovias temporárias usadas pela desaguar o carregamento de drogas, ouro ilegal, madeira clandestina e espécies protegidas. Conhecidas como furos, as rotas sazonais aparecem dia após dia e funcionam como passagens secretas para burlar a fiscalização e fazer a droga chegar às cidades de Manaus, Belém e Macapá, de onde, misturada a cargas, em bagagens de avião e até em submersíveis caseiros, ruma com destino ao mercado europeu.
VEJA acompanhou militares do PEF de Ipiranga na fiscalização de um desses furos. Na madrugada do dia 28 de fevereiro, por exemplo, sob a batuta do primeiro tenente Leonardo Farias, que comanda o PEF, uma equipe de militares apreendeu uma tonelada de skunk que tentava passar despercebida. A polícia colombiana havia identificado uma embarcação suspeita ainda longe de águas brasileiras e avisado o Exército. Um drone manipulado por criminosos sobrevoava desde a noite de 27 a rotina dos militares brasileiros em busca de fragilidades que os permitissem passar com a droga.
Militares brasileiros, munidos com óculos de visão noturna e armados com fuzis, lotaram duas embarcações e navegaram rio adentro até interceptarem os criminosos. Foram três horas de remo, com motores dos barcos desligados para evitar que qualquer sinal sonoro alertasse o alvo. O breu era absoluto. “Os criminosos acreditam que, por eles aproveitarem Carnaval, Natal e Ano Novo, nós, militares, também temos esse costume. Pelo contrário. Nesses momentos a gente intensifica ainda mais a fiscalização”, diz Farias. “Dei disparos de advertência para que eles soubessem que o Exército brasileiro estava ali. Eles pularam na água e fugiram”, completou. A droga ficou para trás.
No tripé formado pelas forças de segurança que atuam na fronteira amazônica, as Forças Armadas de longe têm o maior contingente – cerca de 9500 homens responsáveis por mais de 4.000 quilômetros de extensão apenas nas regiões vizinhas à Colômbia e ao Peru. Uma fatia dos cerca de 70 milhões de reais do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON) foi utilizada recentemente para a compra de óculos de visão noturna, rádios de comunicação e embarcações mais modernas. “É uma fronteira muito grande, porosa, mas nós estamos presentes, dentro das nossas capacidades, realizando patrulhamentos para prevenir ações delituosas. No combate ao crime, são 72 operações ao longo do ano, além de patrulhamentos fluviais e deslocamentos de aproximadamente 150 km todos os dias”, resumiu a VEJA o comandante Ribeiro Júnior, do 8º Batalhão de Infantaria de Selva, em Tabatinga.