Há 13 anos no topo dos países que mais matam pessoas trans no mundo, o Brasil deu um passo para reverter esse quadro. Na última semana, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a Lei Maria da Penha é aplicável para mulheres transexuais.
A partir da decisão proferida em 5 de abril, a mulher trans fica protegida pelos dispositivos da lei – que agrava punições para violência de gênero –, sem contar condição biológica ou cirurgia de redesignação sexual.
De acordo com dados do Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, em 2021 o país registrou 140 assassinatos de pessoas trans. Entre as vítimas, constam 135 travestis e mulheres transexuais, e cinco homens trans.
O estudo foi realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) com apoio de universidades como a Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Federal de São Paulo (Unifesp) e Federal de Minas Gerais (UFMG).
Os números permanecem altos, mesmo após o Supremo Tribunal Federal criminalizar a transfobia no Brasil, em decisão de 2019.
Há três anos, a Corte Suprema tipificou atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais como crime de racismo.
Medidas protetivas
Agora, com o entendimento inédito do STJ, as mulheres trans passam a ter mais uma proteção. A 6ª Turma deu provimento a um recurso especial para fixar medidas protetivas a uma mulher transexual. A alegação foi de que a requerente era vítima de agressões do próprio pai.
No caso em questão, o pai da autora da ação, usuário de drogas e álcool, agrediu a filha com um pedaço de pau. Ela foi perseguida pela rua até encontrar uma viatura da Polícia Militar.
Instâncias ordinárias por todo o país já tinham entendimento de beneficiar mulheres trans com a lei. No entanto, essa não era uma decisão unificada. Tanto que o recurso que chegou ao STJ tratava da negativa de medidas protetivas a uma mulher trans pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
O Ministério Público de São Paulo recorreu, defendendo que a Lei Maria da Penha protege a mulher contra qualquer espécie de violência fundada no gênero, e não apenas no sexo biológico.
O ministro Rogerio Schietti, relator do caso, afirmou em seu voto: “A Lei Maria da Penha nada mais objetiva do que proteger vítimas em situação como a da ofendida destes autos. Os abusos por ela sofridos aconteceram no ambiente familiar e doméstico, e decorreram da distorção sobre a relação oriunda do pátrio poder, em que se pressupõe intimidade e afeto, além do fator essencial de ela ser mulher”.
Assim, os tribunais de primeira instância agora têm jurisprudência para votar no mesmo sentido.
Maria da Penha: entenda a lei que combate a violência contra a mulher
Direitos
A partir de agora, todas as condições garantidas às mulheres cisgênero também valem para as mulheres trans. “Ela vai ter acesso à rede de proteção, a mecanismos e a institutos que ampliam a assistência à mulher que sofre algum tipo de violência. Ela será atendida em juizados especiais e delegacias preparadas para receber mulheres nessa situação”, ressaltou a advogada e membro do Comitê de Diversidade da SiqueiraCastro, Livia Fabbro Machado.
Para Andrea Costa, advogada criminalista sócia do Loureiro, Costa e Sousa Advogados, a decisão do STJ é extremamente importante e representa uma evolução na proteção das mulheres trans.
Anteriormente, em alguns casos de violência contra mulheres trans, a Lei Maria da Penha era aplicada, desde que comprovada a mudança de sexo biológico. Ou seja, era necessário ter passado pela cirurgia de redesignação sexual.
Determinados tribunais dispensavam a exigência e já aplicavam a Lei Maria da Penha para mulheres trans que ainda não tinham passado por essa transição.
“A forma com que o STJ abordou o caso, e com que o CNJ tem se manifestado, trouxe como conceito sobre mulher trans a necessária identificação de gênero. Ou seja, não sendo exigida a cirurgia. Até porque a Lei Maria da Penha é uma lei que protege a mulher enquanto gênero, não enquanto questão biológica”, ressalta a defensora, na mesma linha do ministro relator no STJ.
Para Andrea Costa, o número de feminicídios no país comprova que essa proteção é necessária.
Recomendação para mudança de postura
A subprocuradora-geral da República Raquel Dodge, em sua manifestação, recomendou que o STJ utilizasse como referência o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Em outubro de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou um Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero. O documento cria uma lente sobre a análise de casos que envolvam mulheres, a fim de alcançar a equidade nos julgamentos.
A iniciativa visa construir parâmetros para o melhor tratamento das usuárias do sistema de Justiça.
*Com informações metrópoles