As parcerias econômicas e os negócios do Brasil com ditaduras aumentaram neste terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Uma das principais estratégias da política externa do presidente é o reforço das relações econômicas com os países do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos).
Dos 11 países que compõem o bloco informal, sete são classificados como regimes autoritários, segundo o Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit (EIU), divisão de análise da revista britânicaThe Economist. O índice avalia a situação da democracia global desde 2006. Os sete membros autoritários são Rússia, China, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã.
Paulo Ramirez, professor de Ciência Política da ESPM, diz que a ênfase do governo em intensificar as relações no “Sul Global”, dando a prioridade aos Brics, tem suas raízes nos dois primeiros mandatos de Lula. O objetivo era o de diminuir a dependência dos Estados Unidos e da União Europeia (UE).
O volume de transações comerciais (soma de exportações e importações) entre o Brasil e esses sete países aumentou de US$ 181,9 bilhões em 2022 – ano anterior à posse de Lula – para US$ 190 bilhões em 2024, de acordo com dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
A participação desses países no comércio total brasileiro subiu de 30% para 31,7% no período, impulsionada principalmente pela China, principal destino das commodities agrícolas e minerais do Brasil.
Em contraste, as transações comerciais entre o Brasil e a UE, bloco em que estão 14 das 25 nações mais democráticas do mundo, tiveram um crescimento modesto entre 2022 e 2023, atingindo US$ 95,5 bilhões. Nesse período, as exportações brasileiras para a UE caíram 5,2%, enquanto as importações aumentaram 6,8%.
O que explica a aproximação entre Brasil e ditaduras
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que as relações econômicas do Brasil com países não democráticos tendem a se tornar mais comuns e a crescer nos próximos anos. Diversos fatores contribuem para essa tendência:
- a priorização de interesses econômicos e políticos sobre a natureza dos regimes;
- a relevância crescente do comércio internacional com os membros do Brics;
- o foco em firmar acordos com parceiros dispostos a negociar;
- o aumento da influência global de regimes autoritários.
Segundo Ramirez, da ESPM, as relações diplomáticas frequentemente priorizam interesses econômicos e políticos sobre a natureza do regime de um país. “É uma prática comum na história”, afirma, citando como exemplo o reconhecimento brasileiro da independência de Angola, governada por um movimento de orientação comunista, ocorrido durante o regime militar no Brasil em 1975.
O professor pondera que, sob a ótica da opinião pública, intensificar relações com ditaduras pode parecer um contrassenso. No entanto, ele ressalta que a dinâmica das relações internacionais opera sob outra lógica. “O Brasil, historicamente, priorizou interesses comerciais e geopolíticos”, explica. “A dinâmica das relações internacionais é diferente da política interna.”
Desvincular-se economicamente dos Brics não seria uma tarefa simples para o Brasil, avalia Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. “Apesar da natureza autoritária de muitos membros, o Brasil não tem como [romper facilmente] devido à institucionalidade do bloco e ao volume de comércio.”
Outro fator é o foco do Brasil em firmar acordos com parceiros dispostos a negociar, independentemente do regime político. Um exemplo de negociação complexa é o acordo entre Mercosul e União Europeia, pendente de implementação e enfrentando resistências de membros como a França.
A crescente influência global de regimes autoritários também é um fator relevante. Segundo a EIU, quase 40% da população mundial vive sob tais regimes. O número de países classificados como autoritários pela EIU aumentou de 52, em 2014, para 60 em 2023.
O V-Dem Institute, sediado na Universidade de Gotemburgo (Suécia), corrobora essa visão, apontando uma tendência preocupante de “autocratização”. O instituto sueco destaca que, pela primeira vez em duas décadas, o mundo possui mais autocracias do que democracias liberais. Estas últimas abrigam apenas 12% da população mundial, o menor índice em 50 anos.
O órgão aponta que países maiores, mais populosos e economicamente poderosos, muitos dos quais exercem influência regional e em organizações internacionais, impulsionam essa tendência.
China: negócios do Brasil com ditaduras despertam polêmicas
A China, principal parceiro comercial do Brasil, é classificada como regime autoritário pelo índice da The Economist. No ranking de democracia, a China ocupava a 138ª posição em 2006, caindo para a 145ª (entre 167 países) na edição de 2024.
O levantamento aponta a ausência de eleições livres e justas, de um sistema multipartidário competitivo e de alternância de poder pelo voto. Menciona também problemas na transparência governamental, na responsabilização de líderes, na limitação da participação cidadã e restrições a direitos e liberdades individuais.
Em 2024, as exportações brasileiras para a China totalizaram US$ 94,4 bilhões, 9,5% a menos do que no ano anterior. O país asiático é o principal destino de commodities brasileiras como soja, petróleo e minério de ferro.
Por outro lado, as importações vindas da China atingiram US$ 63,6 bilhões em 2023, o maior valor da série histórica iniciada em 1997. Os principais produtos comprados foram automóveis de passageiros, diodos, transístores e dispositivos semelhantes com semicondutores e aparelhos de telefonia.
A relação bilateral transcende o comércio. Em visita à China em 2023, Lula assinou acordos, incluindo um para realizar transações comerciais nas moedas locais (real e yuan), buscando reduzir a dependência do dólar. “Ninguém pode parar o Brasil de continuar a desenvolver seu relacionamento com a China”, disse o presidente na ocasião.
Em novembro de 2023, durante a visita do ditador chinês Xi Jinping ao Brasil, que coincidiu com a Cúpula do G20 no Rio de Janeiro, foram assinados 37 acordos bilaterais em áreas como agronegócio, tecnologia, intercâmbio educacional e cooperação.
A China figura também entre os principais investidores diretos no Brasil. Dados do Banco Central (BC) sobre o fluxo de Investimento Direto no País (IDP) ao final de 2023 (divulgados no ano passado) mostram um total de US$ 44,9 bilhões de origem chinesa no país, atrás apenas de EUA, Espanha, França, Países Baixos e Reino Unido. O investidor direto é aquele que detém 10% ou mais do capital com direito a voto de uma empresa ou fundo de investimento.
No entanto, a intensificação dos negócios com a China também gera controvérsias. A jornalista norte-americana Anne Applebaum, em seu livro Autocracia S.A.: Os ditadores que querem dominar o mundo, lançado em novembro no Brasil, menciona a venda de tecnologia de vigilância (“cidade segura”) pela Huawei ao Brasil como parte de uma estratégia chinesa mais ampla para:
- expandir sua influência global e estabelecer uma “nova ordem mundial”;
- construir alianças e obter apoio político;
- posicionar-se como alternativa econômica para países sob sanções (como Rússia, Venezuela e Irã); e
- promover seu modelo de governança como alternativa às democracias ocidentais.
Anteriormente, em 2019, Larry Diamond, pesquisador sênior sobre democracia da Universidade de Stanford (EUA), já alertava no livro Ill Winds: Saving Democracy from Russian Rage, Chinese Ambition, and American Complacency (sem tradução para o português) sobre o uso do poder econômico chinês para comprometer a independência das instituições democráticas, silenciar críticas e influenciar políticas de outros países.
Especialistas apontam riscos a longo prazo. Sergio Vale questiona a sustentabilidade do crescimento em regimes fechados como o chinês em momentos de instabilidade. Outra dúvida de analistas é sobre o equilíbrio entre os benefícios econômicos e a defesa de princípios democráticos.
Rússia: comércio cresce em meio a sanções e guerra
A Rússia, outro membro autoritário do Brics, ampliou suas relações comerciais com o Brasil, apesar das sanções internacionais impostas ao país devido à invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.
O Brasil mantém déficit comercial significativo com a Rússia. Em 2023, segundo a Secex, esse déficit atingiu US$ 9,5 bilhões, o maior valor desde 1997 e o sétimo consecutivo, com tendência crescente nos últimos quatro anos. Em 2024, as exportações brasileiras para a Rússia cresceram 7,9% em relação a 2022, enquanto as importações subiram 9,5%.
A Rússia é um fornecedor crucial para o agronegócio brasileiro, respondendo por cerca de um quarto dos fertilizantes importados pelo Brasil. Os principais produtos exportados àquele país no ano passado foram soja, café e carne bovina congelada.
Além disso, o Brasil se tornou o segundo maior importador mundial de diesel russo em 2024, comprando mais de 7 milhões de toneladas, segundo o Centre for Research on Energy and Clean Air (Crea, na sigla em inglês), um think tank finlandês.
Essa dinâmica comercial colocou o Brasil como um dos destinos importantes para produtos russos que enfrentam sanções no Ocidente. Analistas apontam que essas vendas ajudam Moscou a financiar a guerra na Ucrânia.
A diplomacia brasileira sob Lula defende a manutenção do diálogo e da cooperação com a Rússia, buscando posicionar o Brasil como um possível mediador no conflito na Ucrânia. O presidente brasileiro mantém relações cordiais com o ditador russo, Vladimir Putin. Em março, este agradeceu publicamente o envolvimento do brasileiro na busca por soluções para a questão ucraniana.
O índice de democracia da EIU reflete uma deterioração na Rússia: classificada como “regime híbrido” (102ª posição) em 2006, caiu para a categoria de “regime autoritário”, ocupando a 150ª posição no relatório de 2024.
Venezuela: comércio persiste apesar da instabilidade política
Apesar das tensões políticas e das críticas intermitentes do governo brasileiro ao regime do ditador Nicolás Maduro, as relações comerciais e econômicas com a Venezuela se mantêm. Nos últimos quatro anos, as exportações para o país vizinho superaram US$ 1 bilhão anuais. Em 2024, atingiram US$ 1,2 bilhão, um aumento de 3,8% em relação a 2022, segundo a Secex. Os principais produtos vendios são açúcar, extratos de malte e milho.
As importações de produtos venezuelanos crescem desde 2020. No ano passado, somaram US$ 422,2 milhões, 2,3% acima do valor de 2023. Os principais itens importados foram fertilizantes, alumínio bruto e álcoois acíclicos.
Além do comércio, existem financiamentos não pagos ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) referentes a projetos de infraestrutura na Venezuela, executados por construtoras brasileiras.
Segundo o Valor, entre 1998 e 2017 foram desembolsados cerca de US$ 1,5 bilhão para obras como a ampliação do metrô de Caracas e a construção da Siderúrgica Nacional. As empresas envolvidas foram investigadas na Operação Lava Jato.
A EIU classifica a Venezuela como regime autoritário desde 2017, refletindo uma deterioração democrática consistente. No índice, o país caiu da 93ª posição em 2006 para a 142ª em 2024.
Vietnã: busca por parceria estratégica com foco em comércio e investimentos
O Vietnã, também classificado como regime autoritário pela EIU, é outro país com o qual o governo Lula busca estreitar laços econômicos. Os principais problemas no regime comunista do país do Sudeste Asiático são déficits principalmente no processo eleitoral, pluralismo e liberdades civis. No ranking de democracia, o Vietnã subiu ligeiramente da 145ª posição em 2006 para a 133ª em 2024, mas permanece na categoria autoritária.
O comércio bilateral Brasil-Vietnã experimentou forte crescimento, saltando de US$ 534 milhões em 2008 – ano da primeira visita de Lula ao país – para US$ 7,7 bilhões em 2024. O Brasil registrou um superávit de US$ 405 milhões neste último ano. A meta estabelecida pelos dois países é atingir US$ 15 bilhões em trocas comerciais até 2030.
O governo brasileiro busca diversificar a pauta de exportações para o Vietnã, atualmente concentrada em commodities, visando incluir produtos de maior valor agregado, como aeronaves civis e militares. “É um marco de uma nova fase de cooperação”, disse o presidente Lula sobre a relação bilateral.
A visita do presidente ao país no mês passado, resultou na abertura do mercado local para a carne bovina brasileira, somando-se a autorizações anteriores para couro, miúdos e pés de frango. Negociações para a venda de jatos da Embraer à Vietnam Airlines estão em andamento, com potencial para instalação de um centro de manutenção no paós. O governo brasileiro vê o país como uma porta de entrada estratégica para as aeronaves da Embraer no mercado da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean).
A JBS anunciou investimentos de US$ 100 milhões na construção de duas fábricas no Vietnã para processamento de carnes (bovina, suína e aves), utilizando matéria-prima brasileira para abastecer o mercado local e outros países do Sudeste Asiático. Durante a visita, o Brasil também reconheceu o Vietnã como economia de mercado e estabeleceu uma parceria estratégica na cafeicultura. Os dois países estão entre os maiores produtores mundiais.
As importações brasileiras do Vietnã também estão em alta, atingindo US$ 3,6 bilhões em 2023, o maior valor da história. Os principais produtos importados são aparelhos de telefonia, circuitos integrados e pneus.
Irã, outra ditadura: Lula se mostra “amigo” de país que desrespeita direito das mulheres
O Irã também tem intensificado suas relações comerciais com o Brasil. Segundo a EIU, o Irã se mantém na categoria de regime autoritário desde 2006. Sua posição no ranking da democracia caiu de 139ª em 2006 para 154ª em 2024.
O braço da The Economist destaca características como repressão à crítica, controle estatal da mídia e falta de independência judicial como fatores que contribuem para a baixa pontuação do país no índice de democracia.
Críticos apontam que a aproximação brasileira ocorre a despeito do histórico do Irã em relação a abusos de direitos humanos, especialmente contra mulheres, seu apoio a grupos considerados terroristas por países ocidentais e sua controversa política nuclear.
As exportações brasileiras para o Irã, que é uma teocracia ditatorial, foram de US$ 3 bilhões em 2023, com alta de 30,6% em relação a 2022 e o segundo maior valor da série histórica. Os principais produtos vendidos são milho, farelo de soja e soja em grão. As importações brasileiras do Irã foram significativamente menores, totalizando US$ 9,7 milhões no ano passado, devido às sanções impostas ao país.
A postura diplomática do governo Lula em relação ao Irã também gera debates. O presidente tem se mostrado um “amigo do país”. Em outubro, após um ataque iraniano com mísseis e drones contra Israel, a nota inicial do Itamaraty condenou ataques em geral na região, mencionando ações israelenses anteriores no Líbano e na Síria, sem condenar diretamente o ataque iraniano.
Uma nota posterior condenou a “escalada do conflito”. A posição foi criticada por não se alinhar a condenações mais diretas feitas por outros países e por ser vista por alguns como leniente com o regime iraniano, conhecido por apoiar grupos terroristas como o Hezbollah.