Sim, Jair Bolsonaro pode perder a patente e o salário de capitão do Exército, mesmo sendo um militar reformado. Quem faz a afirmação é a ministra Maria Elizabeth Rocha, que hoje preside o Superior Tribunal Militar (STM). O evento que abalará as placas tectônicas da política brasileira acontecerá se o ex-presidente for condenado no Supremo Tribunal Federal a mais de dois anos de prisão na acusação de trama golpista. Nesse caso, sentará também no banco dos réus no STM e pode ser considerado indigno para o oficialato. O mesmo risco ameaça generais, coronéis e pelo menos um almirante. Se Bolsonaro for julgado pelo STM, enfrentará o segundo o processo na Justiça militar. No primeiro, a Corte o livrou da condenação no plano de explodir bombas em quartéis no Rio de Janeiro, em episódio revelado por VEJA. “Importante mostrar para a sociedade que ninguém está acima da lei”, diz Maria Elizabeth, de 65 anos, mineira de Belo Horizonte, feminista e única mulher a presidir a Corte em 217 anos. Na entrevista, a primeira concedida após a sua posse, em março, ela analisa o simbolismo de o país levar ao banco dos réus militares acusados de um golpe e fala sobre os riscos à democracia.
Bolsonaro pode mesmo perder a patente de capitão no STM? Ele poderá perder a patente de capitão. Já foi recebida a denúncia. Se ele vier a ser condenado e a sentença transitar em julgado no STF, a depender do quantitativo da pena que vai ser aplicada, ele será julgado também no STM e poderá vir a perder o posto, a patente para oficialato e os proventos, se o tribunal entender plausível.
Há alguma chance de Bolsonaro e outros réus não serem julgados no STM? Todos nós declinamos o foro para o Supremo Tribunal e ninguém aqui, em momento nenhum, apreciou qualquer ato do 8 de Janeiro por entender que não era a jurisdição correta. Mas, nesse caso da trama golpista, muito provavelmente os militares serão julgados no STM. Quando as penas são superiores a dois anos, cabe representação de indignidade e de incompatibilidade para com o oficialato. Por isso, provavelmente serão julgados também neste tribunal.
Considera que ocorreram crimes militares nas ações que culminaram no 8 de Janeiro? Sobre os atos perpetrados no 8 de Janeiro e os desdobramentos que os antecederam, por certo eu vislumbro a existência do cometimento de eventuais crimes militares, não só pela condição dos agentes perpetradores — militares da ativa e da reserva —, como em razão de o acampamento em frente ao QG do Exército ser um local sob administração militar, o que em tese atrairia a competência da Justiça Militar da União.
Alguns dos réus, como Walter Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira, têm influência na ativa ainda hoje. O general Paulo Sérgio era comandante do Exército três anos atrás. A condenação deles pode provocar insatisfação nas tropas? Pode até provocar insatisfação, mas essas insatisfações vão ter que ser absorvidas. Afinal de contas, a democracia é justamente o ajustamento dos dissensos e consensos. Então, eu até acredito que vá provocar insatisfações. O fato é: porque vai provocar insatisfações, não se condena?
“Ter militares de alta patente no banco dos réus é algo simbólico para o país. Ninguém está acima da lei. O fato de vestir uma farda não exonera essa pessoa dos compromissos de cidadania”
O STM poderá sofrer algum tipo de pressão das Forças Armadas durante esse eventual processo? Não tenho dúvida de que serão feitos os lobbies, que serão feitas as interlocuções no STM, mas, veja bem, os nossos dez militares da Corte são agregados. Eles não fazem mais parte do alto-comando. Então, não têm mais influência nem gerência sobre a tropa — isso é importante —, e, consequentemente, nem os comandantes das Forças têm gerência sobre eles.
Qual será o impacto político de uma possível condenação do ex-presidente? Politicamente isso terá um significado muito forte no Brasil. Não só (a condenação) do presidente em si, mas dos generais. Porque nesses dezoito anos de Corte não me lembro de nenhum julgamento semelhante. Isso é muito simbólico, porque é importante mostrar para a sociedade que ninguém está acima da lei. E que o fato de vestirem fardas não os exonera dos compromissos de cidadania que todos nós temos o dever de zelar. Do militar se exige, por estar investido das armas da nação, por ser armado pelo Estado, uma série de restrições dos seus direitos fundamentais para o bem do Estado democrático e a preservação do bem-estar da sociedade civil, que é desarmada e vulnerável. Então, é necessário que se avalie, dentro dessa conduta, se houve um mau ferimento do éthos militar, da honra militar, daquilo que eles gostam tanto de falar, de um honor militar. Se realmente for verificado, o militar precisa ser punido.
Conforme mostram as investigações, discutiu-se o artigo 142 da Constituição e o seu uso para sugerir as Forças Armadas como poder moderador. Ele permite mesmo esse papel? Absolutamente, não. Esse papel não se coaduna com o Estado democrático de direito inaugurado com a Carta de 1988. A despeito de o artigo 142 ter sido um dispositivo inserto na Constituição por iniciativa do então ministro Leônidas Pires Gonçalves, que se articulou durante os trabalhos para aprovar a redação atual, que menciona defesa da Pátria, garantia dos poderes constituídos e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, resta evidente para o hermeneuta do direito que ele está a se referir aos poderes constitucionais. Até porque os códigos devem ser interpretados em conjunto com os demais articulados e princípios que eles contêm, e não isoladamente.
Quais lições precisam ser aprendidas a partir do atual julgamento sobre a tentativa de golpe? A história tem que servir de lição. Fico muito assombrada quando vejo as pessoas pedindo a volta da ditadura. Quem pede isso é porque não sabe o horror que era, não sabe o que é ter medo do Estado. Não tem nada pior do que ter o Estado como inimigo invisível porque ele é um algoz de que você não pode se defender. Ele é terrível. Você não sabe o que fazer diante dele. Pode te capturar em qualquer momento, qualquer um pode ser um inimigo. É assustador, apavorante você temer o Estado. O Estado não pode ter esse papel dentro de uma sociedade democrática. Tem que acolher e não refugar as pessoas.
A democracia ainda corre riscos no Brasil? A democracia é um processo inacabado, e ela tem que ser realmente burilada, aprimorada, cultivada, observada, vigiada, para que não pereça. Sou filha de um comunista. Meu pai foi fundador do PDT em Minas Gerais, sempre foi um homem que advogou em favor das liberdades. Foi advogado do Tancredo Neves, em Minas Gerais. Quando o presidente morreu, eu estava lá no Palácio da Liberdade, junto com todos os mineiros, atordoada.
A história do Brasil é marcada por rupturas ou tentativas de ruptura. Somos um país que tem inclinação para o golpe? O Brasil não é um país golpista, mas é um país que não conhece o liberalismo da forma como deveria. O Brasil, lamentavelmente, tem surtos liberalizantes, tem episódios institucionais corretos, legítimos, e outros nem tanto. Temos uma tradição autoritária. Não significa que essa tradição tenha necessariamente que ser a do golpismo. E isso o 8 de Janeiro deixou bem claro. O passado ainda é vivo.
O processo de redemocratização foi falho? Acho que não, mas ainda está se aperfeiçoando. Eu não tenho dúvidas de que as Constituições são projetos inacabados, que articulam com o pretérito, o presente e a posteridade e que se aperfeiçoam ao longo da história. O Brasil de hoje é conjunturalmente diverso do Brasil do passado. Em mais de uma manifestação oficial do atual comandante do Exército, general Tomás Paiva, ele defendeu a liberdade, a democracia e a independência dos Poderes.
O Brasil fez certo ao criar a Lei da Anistia, que perdoou crimes políticos cometidos entre 1961 e 1979? Sempre entendi que a Lei de Anistia se contrapunha aos princípios da Constituição Cidadã, de 1988. Acho que o Supremo da época buscou uma solução de conciliação e ofereceu aquilo que era possível oferecer, como a nossa Comissão da Verdade, que também não reconciliou, mas ofereceu aquilo que era possível. Agora o Supremo está tendo a possibilidade de rever não apenas os crimes dos desaparecidos como crimes continuados, tese antiga e que não é uma tese inusitada que o ministro Flávio Dino criou. O Ministério Público Militar já falava disso. Mas também falava da tortura. Se o Supremo quer manter o seu entendimento de 2010, que entenda então que houve uma revogação dos tratados internacionais de direitos humanos que são internalizados pelo Brasil e que determinam o julgamento.
“No Brasil, que tem uma tradição autoritária, a democracia é um processo inacabado. Ela tem que ser burilada, cultivada, observada e vigiada para que não pereça”
A gestão Jair Bolsonaro levou ao governo um número inédito de militares. Essa politização da tropa é um movimento sem volta? Não, pelo contrário. Vejo o retorno deles aos quartéis. Porque quer falemos em militarização da política ou em politização dos militares ao tratar do governo passado, ambas foram perniciosas na medida em que, quando a política entra nos quartéis, a disciplina e a hierarquia ficam abaladas.
A senhora se definiu como feminista na primeira frase do seu discurso de posse. Isso foi bem recebido entre os colegas da Justiça Militar? A Justiça Militar está dividida como o Brasil. Eu fui eleita por um voto de diferença: o meu. Tenho consciência de que terei embates internos. Faz parte da administração de uma corte de Justiça e eu estou preparada para enfrentá-los. A magistratura ainda é um ambiente muito patriarcalista, misógino e sexista. E, nesse sentido, nós, mulheres, temos que vencer um leão por dia para conseguirmos incluir as nossas vontades, as nossas determinações.
Que legado gostaria de deixar? Ser a primeira mulher é muito importante pra mim, mas o mais importante que eu quero deixar aqui como legado jurisprudencial são as minhas decisões. Quero ser lembrada como uma garantista, como uma pessoa que respeitou as liberdades, que defendeu o Estado democrático, que defendeu as alteridades e as diferenças. Porque eu tenho pra mim que quando forem nos examinar e pensar em nós, daqui a 200 anos, vão pensar em como éramos bárbaros. Como as penas eram cruéis, como as penas eram horrorosas, como é que se pensava em ressocializar alguém com penas assim. Então, quero ser vista como uma juíza que trabalhou e que cumpriu o seu papel na história, como magistrada e como cidadã.