A investigação sobre a fraude na emissão de certificado de vacinação contra a Covid de Jair Bolsonaro, arquivada nesta sexta (28) pelo ministro Alexandre de Moraes, resultou em indícios que, segundo a Procuradoria-Geral da República, não são suficientes para denunciá-lo no Supremo Tribunal Federal (STF). Já no caso do golpe, a PGR entendeu haver indícios não só para acusar, mas também para tornar Bolsonaro réu, em julgamento realizado nesta semana pela Primeira Turma da Corte.
A PGR diz que um caso difere do outro. Mas um ponto em comum é a ausência, na investigação, de provas de ordens diretas de Bolsonaro, seja para inserir dados falsos no sistema do Ministério da Saúde, seja para a adoção de alguma medida com violência e grave ameaça – elementos necessários para o crime de golpe de Estado e de abolição do Estado Democrático de Direito.
Não há, na investigação sobre a suposta tentativa de golpe, uma mensagem ou fala de Bolsonaro para prender ou executar Moraes, por exemplo, ou para incentivar a invasão e depredação do Supremo Tribunal Federal, do Congresso e do Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023.
Na investigação sobre o cartão de vacina, a Polícia Federal imputou a Bolsonaro os crimes de associação criminosa e inserção de dados falsos em sistema por concluir que ele “agiu com consciência e vontade determinando que seu chefe da Ajudância de Ordens intermediasse a inserção dos dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde em seu benefício e de sua filha Laura Bolsonaro”.
Essa conclusão teve como ponto de partida a delação premiada do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que em depoimento à PF disse que “recebeu a ordem do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, para fazer as inserções dos dados falsos no nome dele e da filha Laura Bolsonaro; que esses certificados foram impressos e entregue em mãos ao presidente”.
“O presidente, após saber que o colaborador (Mauro Cid) possuía os cartões de vacina para si e sua família, solicitou que o colaborador fizesse para ele também; que o ex-presidente deu a ordem para fazer os cartões dele e da sua filha, Laura Bolsonaro; que o colaborador solicitou a Ailton que fizesse os cartões; que o colaborador confirma que pediu os cartões do ex-presidente e sua filha Laura Bolsonaro sob determinação do ex-presidente Jair Bolsonaro e que imprimiu os certificados; que solicitou a inserção de dados no sistema ConecteSUS de sua esposa, filhas, ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua filha, Laura Bolsonaro”, diz o depoimento de Mauro Cid na delação.
Pela lei, as declarações de um colaborador não são suficientes para denunciar alguém por um crime, muito menos para tornar alguém réu e depois condenar. A denúncia, por sua vez, só pode ser apresentada se houver prova de materialidade do crime (evidência concreta de que houve um delito) e indícios de autoria (ou seja, elementos que indiquem que alguém participou daquele crime).
No caso do cartão de vacina, a PGR concluiu que não havia provas ou indícios suficientes para denunciar Bolsonaro e, por isso, pediu o arquivamento da investigação do caso, mesmo após o indiciamento do ex-presidente pela PF, que imputou a ele dois crimes.
Na investigação, para tentar confirmar as declarações de Mauro Cid, a PF apresentou como indício de que ele teria consciência e teria pedido a fraude o fato de que os acessos ao sistema ConecteSUS e a impressão dos certificados de vacinação foram realizados dentro do Palácio da Alvorada, onde o ex-presidente residia.
Os acessos foram feitos no final de dezembro de 2022, dias antes de Bolsonaro viajar para os Estados Unidos, nas contas “gov.br” vinculadas a Bolsonaro e a Laura, mas a própria investigação verificou que a entrada no sistema e as impressões foram feitas por Mauro Cid, que acessava em nome do ex-presidente e de sua filha com e-mails e senhas próprios ou criados para isso. A investigação não encontrou uma mensagem direta de Bolsonaro a Cid para emitir os certificados para si e para a filha.
Em depoimento, Bolsonaro negou que tenha realizado esse pedido e que não sabia que os certificados foram emitidos – o ex-presidente rejeitava publicamente se vacinar, pela desconfiança que tinha em relação aos imunizantes contra a Covid.
“Indagado sobre o motivo de ter emitido o certificado de vacinação contendo dados falsos de vacinação contra a Covid-19 no aplicativo ConecteSUS, respondeu que da mesma forma desconhece a emissão do referido certificado em 27/12/2022; que esclarece que, possivelmente, estava cumprindo expediente no Palácio da Alvorada, no horário em que foi gerado o certificado de vacinação”, diz o depoimento de Bolsonaro.
A PF ainda apresentou como indícios de que Bolsonaro teria determinado a emissão de certificados falsos a comunicação entre o advogado e ex-militar Ailton Barros e o ex-secretário de Saúde de Duque de Caxias (RJ) João Carlos de Sousa Brecha, que segundo as investigações teria realizado no sistema os falsos registros de vacinação de Bolsonaro e de Laura em dezembro de 2022.
Os dois atuariam, segundo a PF, dentro do mesmo “modus operandi” já usado por Mauro Cid para emitir certificados falsos para sua mulher, suas filhas e outros ex-ajudantes de ordens de Bolsonaro. Segundo a PF, Cid pedia a fraude a Barros, que por sua vez acionava Brecha, que operava o sistema.
Ao descartar uma denúncia contra Bolsonaro e pedir a Moraes o arquivamento da investigação, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, ressaltou que “não há indício de que o certificado haja sido utilizado, tendo sido dito que fora inutilizado pouco depois de impresso” e concluiu pela “ausência de elementos que justifiquem a responsabilização de Jair Messias Bolsonaro”.
No pedido, escreveu, no entanto, que tal situação “difere substancialmente” do caso do golpe, “em que provas convincentes autônomas foram produzidas pela Polícia Federal, em confirmação dos relatos do colaborador”.
Investigação sobre tentativa de golpe não tem ordens diretas de Bolsonaro
Na investigação sobre a suposta tentativa de golpe de Estado, os indícios colhidos pela PF e que embasaram a acusação por esse crime contra Bolsonaro também partem da delação de Cid e consistem em mensagens ou registros relacionados a terceiros, não diretamente ao ex-presidente.
É o caso, por exemplo, do suposto plano para matar o ministro Alexandre de Moraes, um dos elementos centrais que demonstrariam a alegada pretensão de Bolsonaro de, com grave ameaça e violência, depor o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não há, na investigação ou na denúncia, a apresentação de mensagem, documento ou fala do próprio ex-presidente com ordem para prender ou executar Moraes, então presidente do TSE; nem Lula ou o vice-presidente Geraldo Alckmin.
Na denúncia, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, acusou Bolsonaro de ter ciência do plano porque um general, Mario Fernandes, supostamente envolvido no plano, chamado “Punhal Verde Amarelo”, o imprimiu no Planalto e o levou ao Alvorada em 9 de novembro de 2022. Outro indício para sustentar que Bolsonaro sabia foi a impressão de três cópias por Mario Fernandes no Palácio do Planalto em 6 de dezembro de 2022, num momento em que Bolsonaro também estava no edifício.
O procurador-geral acusa Bolsonaro de concordar com base numa mensagem de Mario Fernandes enviada em 8 de dezembro a Mauro Cid. “Durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas (…) aí na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades”, diz a mensagem.
A denúncia conclui que “o áudio não deixa dúvidas de que a ação violenta era conhecida e autorizada por Jair Messias Bolsonaro, que esperava a sua execução ainda no mês de dezembro. O grupo planejava agir com a maior brevidade possível, a fim de impedir a assunção do Poder pelo novo governo eleito”.
Em seus últimos dois depoimentos, no entanto, Mauro Cid deixa claro que, ao ouvir a mensagem de Mario Fernandes, entendeu que, na conversa com Bolsonaro, ele estava se referindo à possibilidade de o ex-presidente assinar decreto de intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e não na aprovação do plano para prender ou matar Moraes. “Eu não posso confirmar se ele estava falando, efetivamente, que ia ter uma ação ou queria que o presidente decretasse o estado de sítio ou assinasse aquela minuta que foi levada pra ele, para que o Exército pudesse fazer uma coisa”, disse Mauro Cid em depoimento prestado a Moraes e Gonet em novembro de 2024.
“O que podia acontecer é a assinatura do decreto, do decreto, da minuta, o estado de sítio; era isso. Porque era o que estava sendo discutido”, completou Cid.
Outro elemento central da denúncia contra Bolsonaro é a suspeita de que tenha pressionado os comandantes das Forças Armadas a avalizar minutas de decreto para rever o resultado das eleições, por meio de um estado de sítio ou de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A acusação é baseada em depoimentos e de registros de entrada no Palácio da Alvorada que comprovam as reuniões.
A defesa de Bolsonaro diz que ele apenas discutiu dispositivos constitucionais e nunca tomou medidas concretas necessárias para assinar o decreto, como a convocação dos Conselhos da República e de Defesa Nacional.
A investigação da PF também não conseguiu provas diretas do envolvimento de Bolsonaro nos ataques físicos às sedes dos Poderes em 8 de janeiro de 2023. A tese da PF e da PGR é que o ex-presidente fomentou a revolta ao menos desde 2021 com discursos, manifestações e atos que lançavam dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas e a isenção do TSE para conduzir o processo eleitoral de forma equilibrada.
Além disso, apresenta como indício mensagens de militares que teriam contato com manifestantes que estavam acampados no QG do Exército, antes, para Mauro Cid – como algumas de Mario Fernandes, que pediam ação de Bolsonaro ou do governo para impedir prisões de caminhoneiros; ou do tenente da reserva Aparecido Andrade Portela que, segundo as investigações, queria saber de Cid se Bolsonaro ainda poderia dar um golpe, para dar uma satisfação a manifestantes que haviam contribuído financeiramente para o acampamento montado em frente à unidade militar.
Em depoimento, Mauro Cid afirmou que o 8 de Janeiro – tratado pela PF, Gonet e Moraes como a tentativa final de consumar um golpe de Estado – foi “uma surpresa”.
“O dia 8 foi uma surpresa pra todo mundo. Os militares estavam todos de férias”, disse Cid em depoimento a Moraes em novembro do ano passado, acrescentando depois que o acampamento estava “quase esvaziado” nos últimos dias de 2022. “Depois que o presidente saiu [para os EUA], foi praticamente esvaziado. O próprio depoimento do general que era do CMP [Comando Militar do Planalto], ele fala isso aí, estava esvaziado. E, depois, pro 8 de janeiro, as pessoas vieram de fora”, detalhou Cid.