Ministro aprofunda militância política e ideológica na Corte, faz questão de se manter nas colunas sociais e deixa como marca uma gestão de decisões monocráticas e sem direito à defesa
Nenhum outro período da história recente do Supremo Tribunal Federal (STF) foi tão vergonhoso para a imagem da Corte como a gestão em curso do ministro Luís Roberto Barroso. Ele permanecerá na cadeira até outubro, um ano antes das eleições. O sucessor será Edson Fachin.
Aos 67 anos, Barroso pode seguir no STF até 2033 — antes dele, vão pendurar a toga Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, nessa ordem. Até lá, é improvável que mude o comportamento incorrigível de falar demais publicamente, transparecer sua paixão pela cartilha ideológica da esquerda e fazer política dentro do Judiciário.
Foi na gestão dele que o STF avançou a escalada autoritária de condenações de cidadãos sem prerrogativa de foro — e, portanto, sem direito à ampla defesa — pelo tumulto do 8 de janeiro em Brasília. Meteu-se na pauta do Legislativo em questões como a liberação de drogas, a forma como o Rio de Janeiro deve enfrentar o crime organizado (ADPF nº 635, das Favelas), o meio ambiente, o uso de inteligência artificial. E, ainda, a tentativa — cujo desfecho sabe-se lá qual será — de censurar o uso de redes sociais no país, nos moldes de ditaduras nada inspiradoras, como China, Rússia, Coreia do Norte, Venezuela, Paquistão e Irã.
A soberba e a falta de limites na mais alta instância da Justiça brasileira não se restringem só ao presidente, cuja extravagância particular é descrita nos próximos parágrafos. A atual composição do tribunal tem uma ala midiática. O decano Gilmar Mendes e o caçula Flávio Dino se revezam nos estúdios da GloboNews e em entrevistas à imprensa tradicional sobre todos os assuntos — inclusive antecipando votos, o que causa arrepios em círculos de juristas experimentados pelo país. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), contudo, finge que não vê.
Nesta semana, a imagem maculada da Corte foi parar nas páginas da revista britânica The Economist. Mesmo com viés de esquerda, a publicação se rendeu ao que os Estados Unidos já entenderam: Moraes cruzou todas as linhas. “Há crescentes questionamentos sobre o próprio comportamento do tribunal, a qualidade da justiça que ele oferece e a adequação de suas sanções”, diz a publicação, em referência ao julgamento que tornou réu o ex-presidente Jair Bolsonaro.
A revista lembra que o ministro Cristiano Zanin era advogado de Lula até pouco tempo atrás, Flávio Dino foi ministro do petista, e Dias Toffoli destruiu qualquer vestígio da pilhagem do PT descoberta pela Operação Lava Jato. Sobre a corrupção, a publicação relata: “O Supremo Tribunal Federal ganhou influência e prestígio inexoráveis à medida que o Executivo perdeu legitimidade e o Congresso se viu atolado em impasses e escândalos. Desde que decidiu sobre um grande caso de corrupção em 2012 (Mensalão), o tribunal se tornou mais disposto a exercer seus poderes”.
De fato, o julgamento do Mensalão, ocorrido sete anos depois do estouro do escândalo de compra de votos de deputados pelo governo Lula, foi um marco. À época, o brasileiro passou a acompanhar as sessões de julgamento da Ação Penal nº 470 pela TV — as câmeras haviam sido instaladas dez anos antes, a mando do então ministro Marco Aurélio Mello, mas ninguém dava bola. O julgamento durou 138 dias, divididos em 53 sessões. Uma fatia considerável do país descobriu que os magistrados usavam uma capa preta e, embora falassem em linguagem incompreensível, o que estava em discussão era se roubar dinheiro do pagador de impostos era permitido ou não. O STF escancarou a corrupção do PT instalada nas engrenagens do poder.
Agora, Barroso acumula o posto de presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e se vangloria de ter acelerado a fila de processos. Um detalhe, contudo, assusta quem se apresenta como escudeiro da democracia: das 106 mil decisões tomadas pelo STF no ano passado, só 20% foram colegiadas. Ou seja, 80% do que aconteceu no tribunal partiu da caneta de um único magistrado. Pior: desse montante de decisões monocráticas, 70% não tiveram possibilidade de recurso.
No final do ano passado, o ministro fez questão de preparar um vídeo de três minutos para mostrar as “realizações” de sua condução. Em outubro, o site do STF publicou extensas reportagens sobre seus feitos. Uma delas foi intitulada “Aproximação com a sociedade marca primeiro ano da gestão do ministro Barroso”. Dizia o texto: “Na presidência da Corte, o ministro tem intensificado a interação entre o Judiciário e a população e implementado medidas para incrementar a eficiência na gestão”.
Ao listar o que considera grandes avanços, o texto entra de cabeça na agenda woke — ou progressista e seus demais sinônimos. Agora, a Corte tem um programa chamado “STF + Sustentável” para preservar o meio ambiente. Por exemplo: a proibição do uso de garrafas plásticas de refrigerantes ou sucos, o plantio de 5 mil árvores nos arredores do prédio do Supremo e a adoção de energia solar. Além disso, a frota de carros que transportam os ministros em Brasília só pode ser abastecida com etanol.
Barroso criou uma “Ouvidoria da Mulher”, dedicada a denúncias sobre igualdade de gênero e participação feminina. E enviou integrantes do STF e do CNJ para sobrevoar terras e se reunir com indígenas no Pará.
Em relação ao uso de drogas, foi estipulada uma quantidade de maconha para “uso pessoal” de até 40 gramas — não é mais crime, e o porte é considerado uma infração administrativa. O placar apertado foi de 6 a 5, com o voto de Barroso a favor da descriminalização. Especialistas criticaram a fórmula adotada pela Corte para chegar ao montante de droga que pode ser transportado. Por exemplo, se um cigarro de maconha pesar 0,3 grama, é possível carregar 120 cigarros, o que facilmente pode caracterizar um traficante que vai para a porta de uma escola vendê-los. Porém, como a quantidade agora é legalizada, ele não seria preso numa abordagem policial.
Outra reportagem da série para mostrar como Barroso é fantástico lembra que ele está rodando o mundo dando palestras e participando de eventos. “Durante o primeiro ano de gestão, o presidente do STF também esteve em algumas das mais prestigiadas universidades do mundo”, diz o texto. Em apenas um ano, Barroso esteve nos Estados Unidos mais de uma vez, inclusive em fóruns da Organização das Nações Unidas (ONU), na Espanha, China, Alemanha, Inglaterra, Suíça, Costa Rica e nos Emirados Árabes. Todo esse tour pelo planeta pode ser acompanhado pelo site do STF.
Cabe um questionamento mínimo sobre a produtividade do seu trabalho: como ele consegue conciliar uma agenda tão intensa fora do país com a condução de julgamentos urgentes, como os dos presos políticos pelo 8 de janeiro? Ou ainda: por que Barroso precisa ir a Dubai para ser a estrela de um painel internacional batizado “Mudança do Clima e Juízes: Perspectivas Judiciais sobre a Litigância Climática”, sobre o papel do Judiciário na defesa da Amazônia? Por fim: qual é a necessidade, para o STF, de bancar uma viagem à China para falar sobre o uso de inteligência artificial e o sistema judicial de uma ditadura?
Ele falou sobre o excesso de viagens em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. “Quanto aos eventos, eu acho uma falta de compreensão, que tem sido muito explorada recentemente […] Os ministros não podem viver encastelados no mundo próprio; a gente conversa com a sociedade […] Quando nós conversamos com empresários, há sempre uma repercussão negativa, como se tivesse algo impróprio”, disse.
Em fevereiro, o ministro inovou: deixou a toga em Brasília para dar uma palestra motivacional para crianças, em Campinas (SP), como ele mesmo classificou e postou em suas redes sociais.
Nesta semana estive em Campinas, onde fiz uma palestra motivacional para estudantes de ensino médio. Falei sobre integridade, atitudes, valores, e sobre como os jovens precisam se preparar para o futuro. Íntegra aqui: https://t.co/Eb3Nm5dJYz pic.twitter.com/WwFdh8uejt— Luís Roberto Barroso (@LRobertoBarroso) February 20, 2025
Pavoneio
Dois aspectos são marcantes na passagem de Barroso pelo comando do tribunal, além da frequência com que concede palestras. O primeiro são as entrevistas e os discursos políticos (leia abaixo) sobre qualquer assunto. O outro é o gosto pelas colunas sociais. O presidente do STF gosta de cantar em eventos, como rodas de samba em bares, bebendo com estudantes ou no casamento do colega Flávio Dino. Também frequenta camarotes e arrisca passos de samba na Marquês de Sapucaí (veja os vídeos).
Barroso gosta de talk shows para falar sobre suas preferências musicais, livros e todo o resto. Em novembro, ele foi entrevistado pelo ex-deputado Gabriel Chalita num programa da TV Cultura e do Serviço Social do Comércio (Sesc). O diálogo entre os dois começa assim: “Ministro, as pessoas devem conhecer esse seu lado de quem cultua as artes, que tem essa paixão pela cultura brasileira, e isso o ajuda a ser um grande jurista”. Barroso responde: “Gosto de ouvir Caetano Veloso e ler Mafalda [personagem do cartunista argentino Quino]”. Em seguida, são exibidos depoimentos gravados sobre ele, no estilo dos programas dominicais da Rede Globo, de Luciano Huck e Faustão. Aparecem o colega Edson Fachin e mensagens dos filhos. Barroso vai às lágrimas.
DICAS DA SEMANA:
– Um livro: Mal secreto, Zuenir Ventura
– Uma música: Pássaro de fogo, Paula Fernandeshttps://t.co/XnVgfRaHV0
– Uma poesia: Do amoroso esquecimento, Mário Quintana
(https://t.co/klNxrEDiID)— Luís Roberto Barroso (@LRobertoBarroso) April 5, 2024
A postura nada discreta para o cargo que ocupa, contudo, não causa tanto estrago quanto as falas sobre política — que deveriam passar longe do chefe do Judiciário brasileiro, conforme o artigo 2 da Constituição, sobre a independência dos Três Poderes da República.
Barroso parece não ter se abalado com a repercussão negativa do “perdeu, mané” nem do “nós derrotamos o bolsonarismo”, esta última frase dita ao microfone numa assembleia da União Nacional dos Estudantes (UNE), com militantes do PCdoB. Até hoje ele não explicou o uso do pronome, se ajudou ou se sentiu vitorioso ao lado de Lula. Na época, a oposição apresentou um pedido de impeachment ao Senado, por ele ter participado de um evento político-partidário, mas o então presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, engavetou.
Como o Senado não impõe freios ao ativismo político, o ministro segue falando o que quer. No último fim de semana, ele disse que o Supremo “chamou para si a missão de enfrentar o populismo autoritário e o extremismo”. Outra vez, discursava em videoconferência para um evento de universidades nos Estados Unidos. Trata-se de uma afirmação notoriamente política, endereçada à direita. Contudo, não há uma linha na Constituição de 1988 que conceda à Corte o papel de “contenção” ou mediação no embate político do país. Pelo contrário, o distanciamento é necessário, já que políticos com mandatos, por exemplo, só podem ser julgados pelos magistrados.
A libertação de Chiquinho Brazão
Poucas decisões do Supremo Tribunal Federal são mais explícitas de que a régua para condenar, prender ou soltar não é a mesma para a direita e a esquerda quanto a libertação do deputado Chiquinho Brazão. Ele estava preso em Campo Grande (MS) porque responde pela acusação de mandar matar a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, em 2018. A decisão foi do ministro Alexandre de Moraes.
Até agora, não houve manifestações de repúdio dos partidos de esquerda ou de grupos feministas. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, irmã de Marielle, não se pronunciou. E não foi só dessa vez que houve silêncio. O caso do deputado foi “esquecido” pela esquerda desde o encerramento das investigações, porque, depois de cinco anos, o mandante do assassinato não era quem a militância queria: alguém ligado ao presidente Jair Bolsonaro.
Ao libertar Brazão, Moraes acatou o pedido dos advogados em decorrência da alegação de que o deputado tem problema grave de saúde — ele teve episódios de angina. O laudo médico cita “alta possibilidade de sofrer mal súbito”. É exatamente o mesmo caso de Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão, que morreu em novembro de 2023 no pátio do presídio da Papuda, no Distrito Federal. Ele aguardava julgamento por ter participado do tumulto do 8 de janeiro.
Dois meses antes da morte de Cleriston da Cunha, o Ministério Público havia concordado com o argumento da defesa de que era preciso transformar sua prisão em domiciliar para que ele fosse acompanhado por médicos. Alexandre de Moraes, contudo, não analisou o pedido.
Brazão teve a sorte que Clezão não teve.
*Com informações .revistaoeste