Menu

ARTIGO: A autogenerosidade da CBF

WhatsApp
Facebook
Telegram
X
LinkedIn
Email

Na gestão de Ednaldo Rodrigues, denúncias de gastos excessivos e proximidade com políticos mantêm a entidade sob suspeita

Fala mansa, jeito tranquilo, gestos discretos que substituem as palavras. A última coisa que Ednaldo Rodrigues quer é ser lembrado como o atual presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Entrevistas? Ele quase não concede.

As apresentações dos vários técnicos da seleção que já passaram por sua gestão, de menos de quatro anos, foram marcadas por frases protocolares. Esse estilo esquivo explica como o ex-lateral-esquerdo amador ganhou, dentro do futebol, mais poder do que Ronaldo Nazário, um dos maiores jogadores da história da seleção brasileira.

No fim de março, Ednaldo foi reeleito com 100% dos votos, no modelo que ele ajudou a implantar: cada voto das federações tem peso três; dos 20 clubes da Série A, dois; e dos 20 da Série B, um. Com o controle das entidades estaduais por Ednaldo, ficou impossível até para o Fenômeno superar o atual presidente.

“No meu primeiro contato com as 27 filiadas, encontrei 23 portas fechadas”, afirmou Ronaldo quando desistiu da candidatura, 12 dias antes do pleito. “As federações se recusaram a me receber em suas casas, sob o argumento de satisfação com a atual gestão e apoio à reeleição. Não pude apresentar meu projeto, levar minhas ideias e ouvir as federações como gostaria. Não houve qualquer abertura para o diálogo.”

A fala de Ronaldo nem era profecia. Não precisaria ser místico para ter a certeza de que aquela eleição já tinha um vencedor. Não haveria zebra. Ednaldo aprendeu, ao longo dos anos, como costurar os seus apoios no mundo do futebol. Duas semanas depois da eleição, uma reportagem da revista Piauí trouxe muitas das respostas de como o discreto presidente era tão desinibido em angariar apoios.

Desde os tempos de Ricardo Teixeira (1989-2012), o cartola baiano sabe da importância de manter boa relação com políticos. Teixeira, que deixou o cargo pressionado por denúncias de corrupção, foi um dos mentores da famosa “bancada da bola”. Seus sucessores seguiram sua cartilha: José Maria Marin (2012-2015) foi acusado e preso por receber propina relacionada a direitos de transmissão; Marco Polo Del Nero (2015-2017), banido do futebol pela Fifa por corrupção; e Rogério Caboclo (2019-2021), afastado do cargo por denúncias de assédio moral e sexual.

Da esquerda para a direita, os presidentes Ricardo Teixeira, José Maria Marin, Marco Polo Del Nero e Rogério Caboclo | Fotos: Reprodução/Wikimedia Commons

Contudo, ao contrário de Teixeira, Marin e Del Nero, Ednaldo não é alvo de investigação por corrupção. Sua gestão, porém, tem sido repleta de turbulências e de situações suspeitas, conforme relatou a revista. Por exemplo, para a Copa do Mundo de 2022, no Catar, o presidente da CBF pagou, com dinheiro da entidade, para 49 pessoas, entre políticos, dirigentes de federações e familiares, viagens, mordomias caríssimas, hospedagens nos mais luxuosos hotéis e ingressos para jogos do maior evento esportivo do planeta.

A chapa de Ednaldo Rodrigues era a única na eleição | Foto: Divulgação/Staff Images/CBF

Federações sob controle

A prática não é nova. Nos tempos de Teixeira, cinco desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro viajaram para a Copa de 1998, também às custas da confederação. Eles estavam ligados a pautas de interesse do então presidente.

Ednaldo, porém, parece incrementar as extravagâncias, segundo um dos próprios vice-presidentes da entidade, que não quis ter seu nome revelado pela reportagem.

Mesmo acostumado com esses exageros, o vice ficou perplexo com as exorbitâncias turísticas de Ednaldo e com a remuneração paga pelo dirigente baiano aos presidentes das federações. Ele aumentou de R$ 50 mil para R$ 215 mil a remuneração mensal dos 27 presidentes, com direito a 16º salário.

“Quem deveria fiscalizar essa farra, pelo estatuto da entidade, são as federações estaduais”, afirmou o vice-presidente, que apoiou Ednaldo em 2022. “O problema é que essas federações reproduzem o mesmíssimo comportamento. É um sistema viciado.”

Ele se mostrou arrependido do apoio dado. “Ednaldo não é o primeiro presidente da CBF a desviar recurso da entidade para fins pessoais. Mas ele com certeza elevou essa prática a um nível preocupante.”

Na esfera política, as ligações de Ednaldo foram além dos desembargadores. Passaram pelos senadores Jaques Wagner (PT-BA) e Otto Alencar (PSD-BA), que, segundo O Globo, atuaram nos bastidores para o retorno de Ednaldo. E chegaram ao Supremo Tribunal Federal, na figura do ministro Gilmar Mendes. Oeste procurou os senadores e o ministro, mas não obteve resposta.

Tudo porque a tal mudança no estatuto, que elegeu Ednaldo em 2022, foi contestada no Judiciário. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) afastou o cartola da presidência da CBF, pois enxergou irregularidades em sua eleição.

Ednaldo tentou reverter a contestação em várias ocasiões, mas só conseguiu com a atuação de Gilmar, que se tornou o relator do caso, de uma maneira polêmica. A função deveria ter sido do ministro André Mendonça, o primeiro a atuar no caso.

“Os escritórios de Brasília, entre os quais o de Rafael Barroso Fontelles, sobrinho do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, já tinham perdido no STJ [Superior Tribunal de Justiça] e no próprio Supremo”, comentou o ex-procurador Deltan Dallagnol. “A situação estava complicada para Ednaldo.”

Gilmar então concedeu liminar para o retorno dele ao cargo — mesmo tendo tudo para se declarar impedido de julgar a ação de inconstitucionalidade, movida pelo PCdoB, pelo retorno do presidente à CBF. O decano, afinal, é sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), que, desde agosto de 2023, realiza cursos para a CBF Academy, ficando com 84% das receitas de cerca de R$ 9 milhões no ano.

“O Gilmar deu uma liminar favorecendo alguém que comanda uma entidade que é parceira do próprio Gilmar por meio do seu instituto, o IDP”, afirmou Dallagnol. “Ele deu uma decisão favorecendo seu quase sócio.”

Meses depois, na votação em plenário, o ministro Flávio Dino, ex-PCdoB, pediu vista do processo. Mesmo assim, em fevereiro de 2025, Gilmar homologou acordo para que a ação fosse encerrada e Ednaldo se mantivesse no cargo.

Toda a dinheirama

Os métodos de Ednaldo para permanecer blindado também passam pelo controle da informação, conforme relatou o UOL. Sobrou até para os jornalistas Dimas Coppede, Gian Oddi, Paulo Calçade, Pedro Ivo Almeida, Victor Birner e William Tavares, afastados pela direção da ESPN, por três dias, por terem criticado, no programa Linha de Passe, a gestão de Ednaldo, com base na matéria da Piauí. No site da emissora, também foi retirada a matéria sobre as denúncias.

Manifestei ontem, no Linha, meu inconformismo com a pouca repercussão da matéria da @revistapiaui sobre a gestão da CBF. Muitos reforçaram que a própria ESPN pouco repercutiu (eu mesmo afirmei isso). Pois bem: informo que o Linha de Passe de hoje, 22h, será todo dedicado ao tema. pic.twitter.com/iXoBs4l6qr— Gian Oddi (@gianoddi) April 7, 2025

A CBF havia cedido à ESPN o direito de transmitir os jogos da Série B do Campeonato Brasileiro em 2025. Mas já não o fez por conta própria, porque agora, com a entrada das ligas, seriam elas as responsáveis por negociar os contratos. A empresa de mídia negociou com a agência indicada pela Liga Forte Unida (LFU), mas a CBF, na condição de supervisora, pode de alguma maneira interferir no andamento do negócio. A entidade negou qualquer tentativa de limitar a liberdade de expressão.

Nesse clima de ameaça, porém, nem mesmo entidades de jornalistas, contatadas por Oeste, partiram em defesa dos profissionais. Oddi assumiu que houve um afastamento porque, segundo lhe disseram os dirigentes da emissora, “certos processos precisam ser seguidos, e certos processos não foram seguidos”.

Assim, blindado de todos os lados, Ednaldo tem se sentido livre para seguir suas ações confusas na escolha do treinador, no planejamento da seleção e na organização do futebol brasileiro.

“É humanamente impossível ter alternância de poder dentro da CBF”, afirmou o senador Eduardo Girão (Novo-CE). “A última vez que o Brasil foi campeão do mundo foi em 2002. Desde então, o que vemos é uma sucessão de privilégios, mordomias e escândalos. Tudo isso afeta o desempenho dentro de campo e compromete a imagem do país.”

Toda essa dinheirama tem também uma explicação. As receitas da CBF foram de R$ 1 bilhão em 2023 e vão crescer ainda mais, por causa da renovação do patrocínio da entidade com a Nike. Os valores passaram de US$ 35 milhões para US$ 100 milhões anuais.

A CBF, no aspecto legal, é uma associação privada sem fins lucrativos. Antes de Ricardo Teixeira assumir, em 1989, dependia de dinheiro público, da Caixa Econômica Federal. O antigo cartola transformou o perfil da entidade ao utilizar agências de marketing esportivo para atrair patrocinadores. Houve um fortalecimento com a marca da seleção brasileira.

Assim, a CBF deixou de ser fiscalizada de perto pelo Ministério Público ou pelo Tribunal de Contas da União, a não ser que haja denúncia. Também não é uma empresa privada clássica, não tem acionistas ou sócios. Esse limbo entre o público e o privado tornou-se cômodo para os dirigentes da entidade gastarem da maneira que bem entenderem.

“É uma grande contradição”, afirmou Vitor Rhein Schirato, professor de Direito Administrativo na Universidade de São Paulo (USP), à Piauí. “Porque, ao mesmo tempo que é autogerida e não presta contas a ninguém, a CBF controla uma atividade de notório interesse social [o futebol].”

Ele considera que já há motivos para uma investigação do Ministério Público e que desvios de dinheiro para fins pessoais e superfaturamentos comprovados podem configurar apropriação indébita ou estelionato. Se for esse o caso, Ednaldo estaria seguindo à risca o caminho dos antecessores.