O cerne da ação movida pelo Rumble e pelo Trump Media & Technology Group (TMTG) reside na tentativa, por parte de Alexandre de Moraes, de impor a ideia de jurisdição universal – uma ideia já relativamente consolidada no âmbito da União Europeia, e que remonta ao século 17, no contexto do combate movido pelo Império Britânico contra a pirataria (a real, não a virtual) – logo ao país que lhe é mais avesso, os EUA. Com efeito, se a noção de “jurisdição universal” entusiasma os adeptos da utopia da assim chamada “governança global” (a exemplo de Moraes e dos líderes união-europeístas), ela tem historicamente repelido os americanos, cuja noção de soberania nacional sustenta-se basicamente na primazia da Constituição nacional sobre as leis e os tratados internacionais.
Dito brevemente, o conceito americano de soberania nacional consiste na afirmação de que os Estados Unidos jamais abrirão mão do direito de participar dos assuntos internacionais na condição de Estado-nação soberano, cujo poder de se autogovernar deve permanecer intacto. Nesse sentido, os poderes do governo americano não podem ser limitados pelos desejos dos governos de outras nações e de organizações supranacionais, mas apenas por sua própria Constituição, concebida pelo povo americano como a lei fundamental segundo a qual se deve julgar a legitimidade de todas as outras leis, tratados e acordos. A Constituição é a lei suprema à qual o povo americano está sujeito, e tudo o que entra em conflito com a Constituição não pode ser vinculante nem para o povo americano (“We, the People”) nem para o governo americano, que existe para servi-lo.
Como escreve o historiador John Fonte em Sovereignty or Submission: Will Americans Rule Themselves or Be Ruled by Others?:
“Durante a maior parte do último meio século, o Departamento de Estado dos EUA tem rotineiramente qualificado a ratificação americana de tratados internacionais com a ressalva de que o país não validará qualquer disposição que viole a Constituição dos EUA. Se houver um ponto de conflito entre um tratado internacional e a Constituição dos Estados Unidos, a Constituição prevalecerá sobre a convenção internacional.”
Alexandre de Moraes tentou estender a sua jurisdição aos EUA, na esperança de, assim como faz em casa, sobrepor a sua vontade também à Constituição americana
Eis que, movido por húbris e delírio de grandeza, e sem nem sequer ser uma organização de direito internacional, Alexandre de Moraes tentou fazer precisamente isso: estender a sua jurisdição (que, por disfuncionalidade da nossa República, se tornou ilimitada) aos EUA, na esperança de, assim como faz em casa, sobrepor a sua vontade também à Constituição americana. Obviamente, não tinha como dar certo, e Moraes acabou enredado num problema que vai muito além de uma mera disputa judicial entre ele e uma empresa estrangeira privada, tocando em questões de soberania e defesa nacional americanas.
No texto da ação, os advogados do Rumble e do TMTG deixam claro a raiz do problema. Depois de descrever com impressionante precisão as violações que Moraes cometeu contra a lei doméstica e os direitos fundamentais dos brasileiros, eles esclarecem:
“Se as ações do ministro Moraes se limitassem ao Brasil, seriam lamentáveis, mas provavelmente não estariam sob a jurisdição dos tribunais dos EUA. No entanto, muitas de suas medidas, incluindo as ilegais ordens de sigilo contestadas neste caso, alcançam diretamente os Estados Unidos, exigindo ações de empresas americanas que não possuem presença no Brasil e que terão o efeito de suprimir a liberdade de expressão não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos e no mundo inteiro.”
Os redatores da ação lembram o papel americano na defesa da liberdade de expressão como pilar fundamental da democracia, um valor consagrado na célebre Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Recentemente, em discurso a representantes da União Europeia, o vice-presidente americano, J.D. Vance, reafirmou esses princípios como um componente essencial da política pública dos EUA. Diante de uma audiência global, Vance articulou o compromisso dos Estados Unidos em defender a livre expressão contra abusos judiciais e medidas autoritárias disfarçadas de combate à “desinformação” ou ao discurso “antidemocrático”. Ao afirmar que “a democracia se baseia no princípio sagrado de que a voz do povo importa”, o vice-presidente sublinhou a necessidade de resistir a imposições extraterritoriais que buscam silenciar discursos legítimos dentro dos Estados Unidos.
A oposição histórica dos Estados Unidos ao ativismo judicial estrangeiro foi reforçada pela Ordem Executiva 14203 (EO 14203), emitida pelo presidente Donald Trump em 6 de fevereiro de 2025, e cujo propósito é reafirmar o compromisso do governo americano em proteger seus cidadãos, entidades e aliados contra ações judiciais estrangeiras ilegítimas. Voltada especificamente contra o Tribunal Penal Internacional (TPI) – um corolário lógico da ideia de “jurisdição universal” –, a EO 14203 denuncia as tentativas do TPI de exercer jurisdição sobre cidadãos ou aliados dos EUA sem consentimento americano, classificando essas ações como uma afronta direta à soberania e à segurança nacional dos Estados Unidos. A EO 14203 estabelece um marco na política dos EUA ao rejeitar tentativas de tribunais estrangeiros de impor seus padrões legais extraterritorialmente – especialmente quando esses padrões entram em conflito com as proteções constitucionais e as normas jurídicas estabelecidas nos Estados Unidos.
“O ministro Moraes não pode ditar os contornos do discurso legítimo dentro dos Estados Unidos. Apenas a lei americana – fundamentada na Primeira Emenda – deve regular e governar essas empresas com sede nos EUA e suas operações americanas.”Trecho da ação judicial proposta contra Alexandre de Moraes nos EUA
Pois, como argumentam os redatores da ação, o indivíduo Moraes seguiu o exemplo do TPI, e o fez de maneira ilegal e coercitiva. Dizem eles:
“Reconhecendo que suas exigências provavelmente fracassariam sob o rigoroso processo de revisão do MLAT, o ministro Alexandre de Moraes elaborou uma estratégia coercitiva para contornar completamente o tratado. Em vez de submeter um pedido formal pelos canais adequados, Moraes emitiu ordens obrigando a Rumble, uma empresa sediada nos EUA sem presença ou operações no Brasil, a nomear advogados locais exclusivamente para receber suas determinações de censura. Essa manobra não apenas contraria os requisitos processuais do MLAT, mas também fabrica jurisdição por meio da coerção, violando os princípios fundamentais do tratado e comprometendo a integridade da cooperação jurídica internacional. Coerção é, sem dúvida, a palavra correta. Por exemplo, quando a plataforma X inicialmente desafiou as ordens de censura de Moraes, ele ameaçou prender os representantes legais da empresa no Brasil, o que levou a X a evacuar sua equipe do país.”
E mais:
“Ao contornar o MLAT, a Convenção da Haia sobre Citação e Notificação e o processo de cartas rogatórias, o ministro Alexandre de Moraes ignorou deliberadamente os mecanismos estabelecidos de cooperação jurídica internacional. Esses instrumentos existem para equilibrar os interesses legítimos dos Estados soberanos, ao mesmo tempo em que protegem contra a imposição de normas jurídicas estrangeiras que conflitam com as leis nacionais. As ações de Moraes rompem esse equilíbrio, estendendo unilateral e ilegalmente a autoridade judicial brasileira para os Estados Unidos sem o consentimento ou supervisão das autoridades norte-americanas. Essa conduta não apenas desrespeita a soberania dos Estados Unidos, mas também estabelece um precedente perigoso, minando a confiança nos processos jurídicos concebidos para viabilizar uma cooperação internacional lícita e respeitosa (…) As ações do ministro Alexandre de Moraes, se não forem contidas, criariam um precedente perigoso, permitindo que tribunais estrangeiros imponham rotineiramente suas leis a empresas norte-americanas sempre que optarem por contornar os canais legais estabelecidos. Isso representaria uma ameaça aos princípios fundamentais da soberania dos Estados Unidos, da liberdade de expressão e do livre debate (…) O ministro Moraes não pode ditar os contornos do discurso legítimo dentro dos Estados Unidos. Apenas a lei americana – fundamentada na Primeira Emenda – deve regular e governar essas empresas com sede nos EUA e suas operações americanas.”
*Com informações gazetadopovo