O homem que aparece na foto próximo à janela foi personagem central de um dos maiores escândalos de corrupção da história. Há exatos vinte anos, ele chefiava um departamento dos Correios responsável pela compra de material. Certo dia, foi procurado por dois detetives que se passaram por empresários interessados em fazer negócios na estatal. Sem saber que estava sendo gravado, o servidor disse que estava no cargo por indicação do PTB, partido da base de apoio do governo Lula, e que os contratos assinados em sua repartição eram precedidos por pagamento de propina.
E explicou: “Nós somos três. Os três são designados pelo PTB, por Roberto Jefferson. É uma composição com o governo. Nomeamos o diretor, um assessor e um departamento-chave. Eu sou departamento-chave”. Depois, detalhou como funcionava o esquema: “Quando é pregão com alta concorrência, é coisa pequena, de 3% a 5%. Quando é serviço, 10%. Consultoria é definida antes, a gente senta e conversa”. Numa demonstração de boa vontade, os “empresários” entregaram 3 000 reais a ele, que, sem desconfiar da armadilha, pegou o dinheiro e guardou no bolso do paletó. Revelada por VEJA em maio de 2005, a cena foi o fio da meada do célebre mensalão.
Acuado pela denúncia, o então deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, concedeu uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo na qual revelou a existência do esquema. Em troca de apoio político, deputados e senadores recebiam gordas mesadas — o mensalão. O escândalo envolveu quarenta pessoas entre parlamentares, empresários e dirigentes partidários. Dos acusados, 24 foram condenados.
Entre eles, além do próprio Jefferson, a nata do poder petista da época: o ex-ministro José Dirceu, o ex-presidente da Câmara, João Paulo Cunha, o ex-presidente do PT, José Genoino, e o ex-tesoureiro Delúbio Soares. Eles foram sentenciados por corrupção e passaram uma temporada na cadeia. O primeiro governo Lula por pouco não implodiu diante do que foi descoberto. Duas décadas depois, o caso continua sendo o maior exemplo de que a Justiça é capaz de alcançar os poderosos. Por outro lado, também serve para demonstrar o quanto corruptos e corruptores podem ser resilientes.
Ex-chefe da Casa Civil do governo, José Dirceu, por exemplo, era tido como o sucessor natural de Lula. Cabia a ele, entre outras tarefas, negociar com o Congresso a aprovação dos projetos de interesse do Planalto. Apontado como mentor do mensalão, ele foi condenado a sete anos e onze meses de prisão, passou 354 dias na penitenciária da Papuda, em Brasília, e cumpriu o restante da pena em regime aberto.
Em 2016, foi indultado pela presidente Dilma Rousseff (PT). Um histórico assim, em tese, já seria suficiente para um ponto-final em qualquer carreira política. Dirceu, no entanto, foi condenado a mais 23 anos e preso pela segunda vez. A Operação Lava-Jato descobriu que ele recebia propina de empresas que mantinham negócios com a Petrobras. O Supremo Tribunal Federal (STF), porém, anulou a condenação algum tempo depois, sob o argumento de que teria havido irregularidades processuais. Livre das acusações, o ex-ministro voltou à cena em grande estilo.
Ele já postou fotos abraçado ao presidente Lula e participou como convidado especial de uma sessão do Senado que celebrou a democracia. Foi aplaudido, elogiado e ainda discursou no plenário. Também já anunciou que pretende voltar ao Parlamento em 2027, eleito como deputado ou senador.
É no mínimo curioso ter o ex-ministro como estrela de uma solenidade de celebração justamente da democracia. No julgamento do mensalão, Dirceu e os demais acusados foram chamados de “profanadores da República”, expressão usada pelo ministro Celso de Mello, à época decano do Supremo, hoje aposentado. “Fui linchado publicamente sem direito a defesa, presunção da inocência e devido processo legal”, disse o ex-chefe da Casa Civil em nota enviada a VEJA.
Em março, Dirceu comemorou 79 anos de idade. Na festa, realizada em Brasília, compareceram nada menos do que treze ministros de Estado, o presidente da Câmara, Hugo Motta, além de dezenas de parlamentares. São poucos os políticos que podem exibir tamanho prestígio. Os convivas, aliás, saudavam Dirceu pela alcunha de “comandante”. Sob sua mentoria, segundo a acusação, forjavam-se contratos entre empresas privadas e órgãos públicos. O dinheiro desviado era usado para subornar os congressistas, financiar campanhas políticas, bancar o luxo e até as despesas mais comezinhas de alguns.
O ex-deputado João Paulo Cunha, por exemplo, todos os meses enviava sua esposa a uma agência bancária para sacar sua parcela do esquema. O dinheiro era usado, entre outras coisas, para pagar a conta da assinatura de TV. O parlamentar também foi acusado de manipular uma licitação para beneficiar uma empresa de publicidade envolvida no escândalo.
Condenado a seis anos e quatro meses de prisão, ele cumpriu a pena em regime semiaberto. Nesse período, aproveitou o tempo ocioso para cursar direito em uma faculdade particular. Formou-se em julho de 2015, mas a nova carreira só deslanchou mesmo em 2023, depois da posse de Lula. Cunha hoje é um profissional requisitado. Aos 66 anos, ele se tornou sócio de um conceituado escritório de advocacia que foi contratado na mesma época para cuidar das demandas da Previ, o bilionário fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, comandado pelos petistas.
As portas abertas do governo ao ex-deputado ainda permitiram a atuação dele como lobista. Em janeiro deste ano, ele pediu ao ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, para conhecer o comandante do Exército, general Tomás Paiva. O encontro foi marcado e o ex-dirigente petista apareceu acompanhado de empresários que queriam apresentar ao chefe militar um portfólio do grupo na área de combate a incêndios.
O encontro não constou nas agendas oficiais. Até onde se sabe, a aproximação ainda não resultou na assinatura de nenhum contrato com o Exército. Em Brasília, uma agenda como essa é valiosíssima para quem pretende fazer negócios com o governo, mas também rende excelentes dividendos para quem consegue marcar.
Cunha e os demais envolvidos hoje tentam reescrever a história, como se o esquema de corrupção nunca tivesse ocorrido. Nesse esforço se destaca Delúbio Soares. Certa vez, ele disse que o mensalão seria lembrado como uma “piada de salão”. Não se sabe se ele estava minimizando o esquema diante de outras fraudes que viriam a ser descobertas depois ou se simplesmente tentava desqualificar o resultado das investigações. Condenado a seis anos e oito meses de prisão por corrupção, o ex-tesoureiro foi apontado como o elo entre o núcleo político e o núcleo financeiro do esquema.
Com a volta do PT ao Planalto, Delúbio, aos 69 anos, se prepara para um voo ambicioso: uma candidatura a deputado federal. “Mister Simpatia”, como é chamado pelos colegas de partido, tem rodado o país desde o início do governo Lula para divulgar o conteúdo do livro que escreveu, no qual afirma, entre outras coisas, que o mensalão foi uma conspirata “concebida no exterior”. “Tanto no mensalão quanto na Lava-Jato os objetivos eram claros: depor Lula, depor Dilma, acabar com o PT. Não conseguiram”, disse em nota enviada a VEJA. Ele, portanto, seria apenas vítima dessa trama.
O discurso no passado era bem diferente. Em 2005, ao eclodir o escândalo, Lula, em um pronunciamento em cadeia nacional, foi contundente:
“Quero dizer a vocês, com toda a franqueza, que me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento. Estou indignado pelas revelações que aparecem a cada dia e que chocam o país”.
Com o tempo, no entanto, a indignação foi refluindo. Em fevereiro passado, durante o aniversário dos 45 anos do PT, ela refluiu de vez e o presidente fez uma defesa pública dos mensaleiros.
“O Zé Dirceu sabe o que é ser vítima da mentira. Está aqui o companheiro Delúbio, que sabe o que é ser vítima da mentira”, disse, com a mesma convicção de antes.
José Genoíno não foi citado, mas também está nesse rol de vítimas. VEJA revelou que o ex-deputado havia assinado um contrato fictício de empréstimo para justificar a entrada dos recursos ilegais no caixa do partido. Condenado a quatro anos e oito meses de prisão, ele se mantinha recluso até a volta do PT ao poder. Hoje, aos 79 anos, não pensa em retornar à política, mas voltou à ativa como uma espécie de conselheiro.
O ex-parlamentar já criticou, por exemplo, o que seria uma suposta aliança do presidente da República com o STF. “Isso é perigoso. Ele pode ter uma boa conversa com o Supremo, mas não deve ter ilusão, porque amanhã o Supremo pode dar o troco”, advertiu. A declaração sugere que o STF aceita conchavos e age movido por conveniências políticas, o que é uma insinuação grave. Professor da Fundação Perseu Abramo, entidade ligada ao PT, Genoino recebe uma aposentadoria de 32 000 reais da Câmara dos Deputados.
Nem todos os mensaleiros importantes foram reabilitados pelo governo petista. Dois deles renasceram antes. Condenado a sete anos e dez meses, o ex-deputado Valdemar Costa Neto manteve-se nas sombras até 2021, quando o então presidente Jair Bolsonaro decidiu se filiar ao PL. Foi a guinada à direita do cacique político que outrora caminhou ao lado de Lula e Dilma Rousseff e agora veste a camisa dos “patriotas” que condenam, entre outras coisas, a corrupção dos governos do PT.
Para justificar a pirueta, Valdemar jura que nunca pegou mesada em troca de votos e afirma que os milhões que recebeu diziam respeito a uma dívida do partido de Lula relativa à campanha de 2002 — nada de corrupção. Na época, o ex-deputado renunciou ao mandato e teve de se afastar do comando de seu partido — tudo enfrentado “sem lamentação”, como costuma rememorar.
O tom muda ao comentar sobre a atuação do ministro do STF Joaquim Barbosa. Com palavras impublicáveis, ele já prometeu um dia desmascarar o relator do caso. Enquanto isso não acontece, Valdemar pilota um partido com 91 deputados, tem nas mãos um cofre bilionário e se empenha em manter o protagonismo em 2026.
O segundo resgatado foi Roberto Jefferson. Condenado a sete anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-deputado perdeu o mandato depois de revelar o esquema e confessar que seu partido recebeu 4 milhões de reais.
Após cumprir a pena, Jefferson voltou a comandar o PTB e, em 2018, se aliou a Jair Bolsonaro, passando a propagar o que havia de mais radical e tresloucado na pregação bolsonarista: a posse de armas, a falta de credibilidade das urnas eletrônicas e os ataques ao STF. Em retribuição ao apoio político, o PTB foi contemplado com cargos no governo. Uma nova queda não tardou.
Certo dia, o ex-deputado postou uma foto segurando um fuzil e pediu para que o então presidente da República substituísse os onze ministros do Supremo. Investigado, em 2022, na véspera das eleições, ele teve a prisão preventiva decretada por incitar ataques a autoridades. Sentenciado a mais nove anos, Jefferson deve ficar em regime fechado até 2029. Seus advogados pediram autorização para que a pena seja cumprida em regime domiciliar, justificando que o ex-deputado está muito doente.
Maurício Marinho, o pivô do escândalo, é uma exceção. Ele sofre até hoje as consequências do que classifica como um “ato impensado”. O ex-chefe de departamento dos Correios tinha 27 anos de serviço quando viu a imagem dele embolsando o dinheiro sendo replicada milhares de vezes nos principais canais de televisão.
Demitido, ele não conseguiu mais se recolocar no mercado de trabalho. Após o escândalo, abriu uma empresa de consultoria, mas os clientes não apareceram. Em 2013, foi contratado como professor de uma faculdade particular. Deu aulas de matemática até 2020, quando a instituição fechou as portas. Nos últimos vinte anos, Marinho respondeu a mais de vinte processos judiciais.
O principal deles prescreveu há dois anos e acusava o ex-servidor de integrar uma organização criminosa que atuava nos Correios. Hoje, aos 72 anos, ele quase não sai de casa e se mantém com uma aposentadoria que, em 2020, estava em 4 600 reais. Nas redes sociais, apresenta-se como professor de raciocínio lógico-matemático (RLM) e posta mensagens religiosas e críticas ao governo Lula. Procurado por VEJA, não quis se pronunciar. “Não me encham o saco”, limitou-se a dizer.
A verdade é que o mensalão foi o primeiro grande escândalo de corrupção a romper a tradição de impunidade dos poderosos. Joaquim Barbosa é o responsável por esse desfecho. Diligente, o ministro enfrentou críticas e driblou obstáculos que poderiam ter colocado todo o processo a perder. Ficaram na história, por exemplo, os calorosos embates entre ele e o revisor do caso, Ricardo Lewandowski, atual ministro da Justiça.
Aposentado há onze anos, Barbosa hoje tem um escritório em São Paulo e não gosta de falar do passado. Seguro de sua atuação, limita-se a dizer, quando indagado, que se preparou por um ano e meio para o julgamento e escreveu pelo menos quatro vezes o voto que sacramentaria o destino de influentes nomes da política sem que houvesse lacunas para contestações ou reviravoltas judiciais — a exemplo do que aconteceu com a finada Operação Lava-Jato.
Nas poucas vezes em que deixa escapar algum comentário dos tempos da toga, celebra o fato de o julgamento ter brecado a roubalheira no país e lamenta a percepção de que, duas décadas depois, a impunidade dos poderosos voltou ao imaginário das pessoas. “Os políticos estão mais ousados”, comentou, certa vez, a uma pessoa próxima.
Mesmo se mantendo distante dos holofotes, vez ou outra Joaquim Barbosa faz barulho. Odiado pelo PT, ele surpreendeu ao anunciar seu voto em Lula contra Jair Bolsonaro — um ser humano classificado por ele como “abjeto” e “desprezível”. Por essas e todas as outras, o ex-ministro enfrenta a ojeriza da classe política em geral, o que impõe barreiras à sua entrada nesse universo.
Em 2018 ele se filiou ao PSB com a pretensão de disputar o Planalto, mas acabou boicotado dentro de seu próprio partido. No pleito seguinte, foi cortejado por outras legendas — o ex-juiz Sergio Moro, por exemplo, lhe propôs uma chapa jurídica, na qual ocuparia a vice, mas a conversa acabou não prosperando. O projeto, ao que tudo indica, não foi sepultado.
No início do ano, enquanto tomava um lanche em uma cafeteria, Barbosa foi abordado por um rapaz que se disse professor e lhe pediu um trocado para comprar comida. Ao se aproximar, o homem reconheceu o ex-ministro. “Se for o senhor mesmo, prazer em conhecê-lo.” Joaquim assentiu, lhe deu dinheiro e o aconselhou a voltar à sala de aula. O rapaz agradeceu e disse torcer para que o ex-ministro ingresse na política. À sua maneira, Joaquim encerrou a conversa: “Vou pensar”.
*Com informações veja.abril