Com inaceitáveis dois anos de atraso, a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos está em casa, ao lado de sua família, incluindo os dois filhos pequenos, privados do convívio materno por puro arbítrio das autoridades brasileiras. Na sexta-feira, a Procuradoria-Geral da República deu parecer favorável à conversão da prisão preventiva em domiciliar, e no mesmo dia o ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizou que Débora deixasse a prisão, no interior de São Paulo, e voltasse para casa. A cabeleireira está sendo julgada por sua participação no 8 de janeiro, e tanto Moraes quanto Flávio Dino já votaram para impor a ela uma pena de 14 anos; Luiz Fux pediu vista, e já deixou implícito que deve votar por uma punição menor.
A prisão domiciliar, no entanto, vem com uma série de outras medidas cautelares que, embora aceitáveis quando comparadas com a prisão pura e simples, não deixam de perpetuar os excessos supremos. Se o uso de tornozeleira eletrônica é adequado, as proibições de utilização de mídias sociais e de conceder entrevistas são violações graves à liberdade de expressão, infelizmente tornadas rotineiras pelo STF; até mesmo o convívio social de Débora continua severamente prejudicado, pois ela só pode receber visitas dos pais, dos irmãos e de seus advogados; outras pessoas precisam ser autorizadas pelo Supremo.
Débora deveria ter passado para a prisão domiciliar logo após ser detida, devido à jurisprudência do Supremo que garante o benefício a mães de crianças pequenas
Débora não esteve entre os mais de mil manifestantes presos no acampamento montado diante do QG do Exército, em Brasília, e desmontado em 9 de janeiro; ela só foi para a cadeia em 17 de março de 2023, tendo sido identificada pelas imagens que a mostravam escrevendo a famosa frase “perdeu, mané”, na estátua A Justiça, diante da sede do STF. De imediato, ela deveria ter sido uma das primeiras a passar para a prisão domiciliar, devido à jurisprudência do Supremo que garante o benefício a mães de crianças pequenas. No entanto, enquanto centenas de outros presos e réus ganhavam o direito de aguardar em casa o desfecho de seus processos, Débora seguia obrigada a permanecer atrás das grades, e passou absurdos 400 dias sem ser formalmente denunciada pela PGR, uma violação grotesca dos prazos processuais.
Forçada a se humilhar em uma carta redigida de próprio punho e enviada a Moraes, Débora teve negados nove pedidos de sua defesa pela conversão da prisão preventiva em domiciliar – um direito, repita-se, garantido pela jurisprudência do STF – sob o argumento estapafúrdio de que haveria “risco concreto à ordem pública”, embora fosse impossível afirmar que perigo seria este, especialmente quando centenas de outras pessoas na mesma situação de Débora já estavam fora da cadeia. As evidências que pudessem pesar contra a cabeleireira já estavam coletadas, não havia chance nenhuma de ela voltar a Brasília para retomar o que quer que fosse, e bastariam uma tornozeleira eletrônica e a obrigação de comparecer periodicamente diante de um juiz em sua cidade para afastar a possibilidade de ela tentar fugir.
O que mudou, então? Teriam Moraes e a PGR subitamente se lembrado que mães de crianças pequenas em prisão preventiva têm direito a ficar em casa aguardando o julgamento? É certo que não; disso eles sabiam desde o início. O que aconteceu foi que a injustiça cometida contra a cabeleireira, especialmente após o voto de Moraes por sua condenação, se tornou tão escancarada que a opinião pública – com muito atraso, afirme-se – finalmente viu e denunciou o abuso, com críticas de uma imprensa ainda bastante alinhada com o STF e até uma manifestação da Comissão de Direito Penal da OAB-RJ, afirmando que o voto de Moraes “não parece seguir qualquer critério aferível”. Manter Débora como um troféu de caça a ser exibido para dar exemplo aos outros tornou-se custoso demais para a PGR e para Moraes.
Débora está em casa, mas seu sofrimento ainda está longe de terminar. Sem nenhuma mensagem ou vídeo que a mostre defendendo a deposição de Lula, ela continua sendo julgada por abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Sem nenhuma prova que a mostre portando qualquer outra coisa além do batom com que escreveu na estátua, ela é acusada de associação criminosa armada. Sem nenhum elemento que a coloque dentro de algum dos prédios dos três poderes, e muito menos quebrando algo, ela responde por dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima.
Nem mesmo as duas palavras escritas com batom e facilmente removidas na sequência poderiam configurar o último dos crimes de que é acusada, o de deterioração de patrimônio tombado – a imputação mais adequada seria a de pichação qualificada, descrita no artigo 65, parágrafo 1.º do Código Penal.
As autoridades que mantiveram Débora presa por tanto tempo sem motivo, negando-lhe o direito de estar com a família, e que agora pretendem condená-la sem provas demonstraram sua torpeza moral e sua inépcia jurídica
Isso significa que, se o voto de Moraes prevalecer e Débora for condenada a 14 anos, ela voltará para a cadeia. Se for condenada por crimes cometidos “com violência ou grave ameaça a pessoa” e envolvendo “organização criminosa”, ela perderia o direito a progredir para o regime semiaberto após cumprir 1/8 da pena, como prevê o artigo 112 da Lei de Execução Penal no caso de gestantes ou mães de crianças pequenas, e teria de cumprir um quarto da pena (ou seja, 3 anos e meio) antes de sair da cadeia, passando mais um ano longe da família.
A única forma de impedir isso seria a absolvição, pelo menos de alguns dos crimes, ou uma pena total que fique pouco acima dos oito anos. Apesar da ressalva de Fux, nenhum desses desfechos parece muito provável no momento.
O caso da cabeleireira Débora joga no rosto do Brasil o tamanho do abismo que vivemos. As autoridades que a mantiveram presa por tanto tempo sem motivo, negando-lhe o direito de estar com a família, e que agora pretendem condená-la sem provas demonstraram repetidamente sua torpeza moral e sua inépcia jurídica.
A opinião pública que passou dois anos fechando os olhos para o drama de Débora e de centenas de outros manifestantes do 8 de janeiro, injustamente presos ou condenados, mostrou que perdeu seus critérios de certo e errado e os substituiu pela conveniência política, em que vale tudo contra quem pensa diferente, cedendo apenas quando o absurdo se tornou difícil de engolir até mesmo para quem trancou na gaveta sua bússola moral. Sair desse abismo é imperativo se queremos que o Brasil progrida como sociedade.