Para os estudantes ribeirinhos da Amazônia, os imensos rios, seus lagos e igarapés são o caminho da escola. Conectam a porta de casa com as salas de aula construídas em áreas alagadas, sobre palafitas.
De canoa ou lancha, em tempos de cheia, os trajetos são navegados em minutos. Na seca, desviando dos bancos de areia, pode levar uma hora. Na seca extrema, como a que atingiu a região ano passado e se repete este ano, a navegação fica mais difícil, expondo jovens e crianças a horas de viagem cansativa.
Em Manacapuru (AM), o rio Solimões, um dos dois maiores afluentes do rio Amazonas, chegou à sua menor marca da história na semana passada, dois metros e seis centímetros. A paisagem, conhecida pela exuberância e fartura de água, se transformou em um assustador deserto de areia.
Os barcos que conseguem avançar são forçados a ancorar cada vez mais longe dos povoados. Além do transporte de pessoas, o abastecimento também foi prejudicado. Em muitos lugares falta água potável, produtos de higiene e medicamentos.
Na comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde fica a escola municipal Lima Bernardo, um banco de areia cruza o horizonte e se estende por 2 km em direção ao outro lado do rio Solimões.
Da nova margem até a escola, a caminhada no leito seco, ondulado e quente leva meia hora e pode cruzar com tempestades de areia. O fenômeno, causado pela intensa perturbação do clima, passou de raro a frequente desde a estiagem do ano passado, dizem os ribeirinhos.
“Não tem condição para uma criança atravessar essa praia todos os dias”, diz o pescador Romário Aguiar Martins, 34, que mora com a mulher e três filhos em seu barco pesqueiro, ancorado no Solimões a 2 km da escola. “É o mais perto que consigo chegar. Antes a gente atracava a alguns metros da escola”, diz.
A coordenadora pedagógica Francisca Lira, 38, conta que a situação fica ainda pior para quem mora em povoados na beira de igarapés e lagos. “Recebemos crianças de dez comunidades. As que moram mais longe, como as da comunidade Lago do Boné, estão precisando de canoa para atravessar a parte rasa. Só depois sobem na lancha. Chegando aqui ainda tem essa caminhada terrível. A viagem delas leva quase três horas”, explica.
A situação, que se multiplica ao longo do Solimões e seus afluentes, fez a prefeitura suspender as aulas em 75 das 111 escolas no último dia 16. Ao todo, 4.570 alunos da zona rural foram afetados e devem receber o conteúdo em casa, através de apostilas.
De acordo com a Secretaria de Educação do município, a portaria que trata da suspensão das aulas está apoiada em um decreto publicado em setembro, que declara situação de emergência na educação em decorrência do desastre climático, e tem duração de 15 dias. Segundo a assessoria do órgão, não são só os alunos que estão sofrendo, e professores que residem na área urbana também estavam correndo riscos para chegar às escolas rurais.
Informações fornecidas pelo governo amazonense mostram que outros 19 municípios, além da zona rural da capital, Manaus, foram impactados pela estiagem severa. “Desse total, todos receberão os kits do programa ‘Merenda em Casa’, além do material pedagógico do ‘Aula em Casa’”, diz a nota, sem esclarecer o número de escolas e alunos afetados.
No primeiro dia de interrupção das aulas em Manacapuru, uma equipe de educadores se reuniu na escola Lima Bernardo para definir a nova estratégia de atendimento dos 180 alunos. Após a confecção emergencial das apostilas, a preocupação passou a ser a distribuição. “Precisamos dar um jeito de levar logo para todos os alunos. Não vai ser fácil”, diz uma professora.
Antony, 7, filho da agricultora Aline Moraes, 24, foi um dos primeiros a receber o material. A família mora ao lado da escola.
Sentados na porta de casa, mãe e filho passaram alguns minutos atentos, analisando os exercícios. A atividade foi interrompida quando o menino percebeu um grupo de amigos brincando num balanço feito de pneu velho, amarrado na copa de um ingá. Em época de cheia, o local fica alagado. Naquela quarta-feira, horário de aula, o deserto de areia desbotava a paisagem enquanto a molecada se divertia.
Para Suely Azevedo, 59, professora do ensino médio, a situação não deve melhorar antes do fim do ano letivo. “Desta vez está ainda pior que o ano passado. Secou mais cedo”, diz.
Ela conta que as mães estão preocupadas com a segurança alimentar. “A escola é um refúgio. Nela as crianças ficam bem alimentadas. Agora ficou complicado, mal chega água potável por aqui”, diz.
“Pirarucu e peixe-boi não tem mais, mas não podemos reclamar de falta de comida. Tem muito peixe liso [sem escamas], mandioca e banana. O problema é conseguir água boa de beber e produtos de limpeza”, conta Yolanda Bezerra Matias, 51, coordenadora das comunidades da Costa do Pesqueiro.
A escassez de água potável e produtos de higiene já reflete na saúde dos mais vulneráveis. “Deu um surto de coceira nos pequenos, parece que é a água”, diz a agricultora Ciane Santos, 23, com a filha Yasmin, 2, no colo.
Ciane mostra a pele da menina, cheia de brotoejas, e conta que demorou a procurar ajuda médica. Queria evitar a dificuldade da viagem de ida e volta até a cidade. “Fomos ontem e o atendimento não demorou. Até poderíamos ter voltado no mesmo dia, mas o calor forte não deixou”, diz a mãe com o olhar de quem teve uma noite mal dormida numa cadeira de hospital.