Apesar de Nova York não ser a pioneira na legalização da venda de cânabis recreativa nos Estados Unidos, a inauguração da primeira loja especializada na substância na cidade seguiu o dilema filosófico: se uma árvore cai na floresta e ninguém nota, ela faz barulho?
Como a fila tem ocupado diariamente todo o quarteirão da Broadway, no sul de Manhattan, epicentro da atenção nacional e internacional, pode-se dizer que a venda de maconha faz uma barulheira desde o último dia 29, quando foi inaugurada a Housing Works Cannabis Store.
Na tarde da última quinta-feira (5) a longa aglomeração se destacava por outra característica não associada a nova-iorquinos nativos: estranhos puxavam conversas amistosas como se fossem conhecidos. Também não é comum uma fila voluntária, associada a recreação, reunir idosos e adolescentes –estes isolados do mundo por fones de ouvido.
A legislação e o licenciamento de produtores e comerciantes de derivados de cânabis compete individualmente a estados nos EUA. O prefeito Eric Adams, eleito em 2021 numa plataforma de combate ao crime, se tornou defensor vigoroso de um modelo de produção e comercialização que se caracterizasse por equidade. Afinal, no auge da chamada guerra às drogas, Nova York liderava o país em número de prisões e de punição desproporcional a negros e latinos de baixa renda.
Adams criou a agência municipal Cannabis NYC e convidou para a direção a veterana Dasheeda Dawson, autora especialista em marketing e varejo da erva. Ela antes supervisionou o programa de Portland, no Oregon.
Em entrevista por telefone à Folha, Dawson explica por que a primeira loja autorizada em Manhattan é operada pela Housing Works, uma ONG fundada em 1994 por um grupo de militantes reunidos pela epidemia de Aids. A organização começou com foco no apoio a moradores em situação de rua que eram portadores do HIV e se tornou conhecida na cidade por operar lojas com estoques doados de artigos usados, entre elas uma livraria-café no bairro do Soho.
“A experiência em varejo fez da Housing Works um símbolo ideal para inaugurar o programa”, diz Dawson, destacando também que a fundação recruta funcionários entre a população que atende, em muitos casos “tirando gente das ruas para ter um emprego decente”.
Justiça social é fator na concessão de licenças no modelo nova-iorquino, explica a supervisora. “Queremos privilegiar e engajar indivíduos e famílias de condenados por porte de maconha, penalizadas desproporcionalmente por antigas práticas de policiamento.”
A prefeitura estima que a nova indústria pode criar até 24 mil empregos e gerar vendas de US$ 1,3 bilhão (R$ 6,8 bilhões) na cidade cuja economia continua castigada pelo choque da pandemia de Covid, com mais da metade dos espaços comerciais vazios.
É preciso ter 21 anos para entrar na loja da Housing Works, no bairro do East Village. Um funcionário confere os documentos ainda na calçada antes de liberar grupos para formar uma segunda fila dentro da loja. Esta repórter esperou, entre os dois passos, quase uma hora e meia para comprar Pillow Talk (conversa de travesseiro), um pacote de 100 gramas de balas jujuba com sabor de blueberries e lavanda, por US$ 35 (R$ 185).
(Alergias me fizeram manter distância dos atraentes cigarros já enrolados, cada um com 1 grama da marca FlowerHouse –toda maconha vendida é cultivada no estado. De todas as despesas de reportagem que precisei cobrar da Folha, nenhuma antes havia proporcionado uma agradável noite de sono, rara para uma insone de carreira que foi derrubada em meia hora depois de ingerir só duas balinhas.)
Por enquanto, a loja só aceita dinheiro vivo e não faz entregas. Dawson diz que a viabilização de vendas online para entrega é uma prioridade necessária para acomodar os hábitos de nova-iorquinos.
Na fila da calçada, Angela Hopkins e Siki Bucci não são velhas amigas, mas marcaram um programa em torno da ida à loja. A primeira, uma executiva residente do Harlem, se diz satisfeita em gastar dinheiro que possa beneficiar “a garotada que mora perto de casa e passou pela prisão”. Menos interessada em recreação, ela procura produtos tópicos, como bálsamos, já que é sobrevivente de um câncer de mama.
Já a exuberante expatriada finlandesa Bucci, que se declara prematuramente aposentada, abre a bolsa para mostrar que, além de consumidora experiente, “gosta de tudo”: comestíveis, jujubas, chocolates, cigarros e vaping (cigarro eletrônico). Questionada sobre a lista de possíveis interesses –recreativo? Medicinal? Relaxante?– ela não pensa duas vezes: “Meu negócio é ficar ‘chapada’ [‘high’], gosto de estar sob a influência de cânabis para pensar criativamente”.
O nova-iorquino William (“sem sobrenome, por favor”) está na segunda viagem de compras e acredita que os preços de Nova York –como tudo mais em Nova York– são um pouco mais salgados. Veterano usuário, diz que sua prioridade é relaxar, antes de se despedir perguntando: “Vocês [brasileiros] já se livraram do [ex-presidente Jair] Bolsonaro?”
Dasheeda Dawson lembra que o programa de cânabis de Nova York é uma força-tarefa de múltiplos departamentos, com ênfase em saúde, e lamenta que ainda haja uma escassez de médicos com experiência no uso medicinal da substância. “Nosso plano é dar apoio a profissionais de saúde que se dediquem a esse tipo de pesquisa.”